Tapeçaria Sensorial
Novembro 23, 2023
Carlos Palmito
E é o chilrear dos pássaros em debandada, sob uma lua que se extingue lentamente, até os seus pios se transformarem numa tosse tísica, tuberculosa.
E é o teu observar, com esses olhos de diamante que ainda vêm o jardim que um dia espezinhei.
Descreve-mo, uma vez mais, novamente, e para sempre. Ou, pelo menos, até ao instante em que o espirrar da minha alma seja só um lamento.
E é uma abelha alérgica a pólens, e um mosquito a alimentar-se do sangue de uma carraça.
Descreve-me a que sabem os ossos esqueléticos do que fui. Descreve-me os bálsamos que me entupiam as narinas, e as cores mutantes que queimavam a retina dos incautos.
E é o sangue que escorre das fossas nasais de um agarrado, sarapintado a verde, amarelo e vermelho, com um colchão azul, a nadar com pássaros e mamutes.
Descreve a textura das folhas de pinheiro onde escrevíamos desenhos com a cinza das trovoadas.
E é uma história por contar, segredos que só o caixão ouvirá no dia que eu finalmente adormeça.
Por favor, diz-me como soa o canto dos enamorados junto à árvore que enforcou onze.
Juiz, júri, carrasco, aldraba de uma porta com as cores do trovão. E é um tambor a rufar num baile de surdos, e uma criança, que sonhava ser um avião.
E é um gato com seis vidas, e um carro a flutuar no horizonte. Três perderam-se na sanidade da profecia escrita no hálito da virgem de Sodoma.
E é o adeus do condutor na entrada do inferno, ladeada por papoilas brancas e cânhamo derretido. E é uma viúva solitária num bar de strip. É cega de nascença, comunga com Jesus todas as noites na sua banheira de pregos enrugados.
E é um elefante abalroado por um rato, que foi coroado rei dos esgotos.
E é um marujo perdido nas algas de um rio esventrado, e são as sereias mumificadas ao sol da vaidade.
E é uma jangada à deriva numa poça de chuva e um neurónio a prostituir-se nos becos da internet.
E é o sabor da derme em decomposição, num mar salgado proibido aos pescadores.
E é uma navalha afiada a descarnar os cordões das botas que caminham sem descanso.
E é uma estrada para nenhures.
E…
Sou eu!
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