Na mata do puma
Outubro 16, 2023
Carlos Palmito
— Inspira, expira… — gritava-me a mente já esgotada.
Atrás, na mata, ouvia os passos do felino. Um olho azul, o outro branco, leitoso, como a seiva do carvalho adoentado, aquele que tombou há dois dias no lodo azulado de excrementos e dejetos humanos.
A inspiração veio em golfadas rápidas, arquejantes, lembrando as engrenagens de um comboio, ao mesmo tempo que me concedia os sabores de algodão-doce misturados com o perfume aromático de um guisado de raízes, túlipas debotadas, sangue férreo e… pânico.
— A que cheira o pânico? — Indagou o sonho, ou a distorção mental.
Cheira… cheira… cheira a caramelo torrado com um leve sabor de fome.
Corri, corri na velocidade da expiração, sentindo o sol a queimar a derme, que transpirava numa catarata de tinturas tão negras quanto as asas de um mosquito.
Quem me dera que o sol morresse, num segundo apenas. Poderia renascer depois, mas, para já, desejava-lhe, egoisticamente, a morte numa agonia diluvial.
Perdi-me nos pensamentos que vinham em catadupa. Esbarrei contra a árvore. Vou fingir que a vi. Mas vi, tenho quase a certeza.
Será que vi?
Vi! Vi mesmo.
— Mentiroso — a mente não se cala, sempre ali, a morder-me o paladar transpirado.
Ela era rugosa, o que vi era rugoso, castanho, verde, negro…
Negro?
O puma!
Os meus olhos piscaram. Puma?
Olhei para trás. Vi-lhe o sabor ao longe, a correr em direção ao chupa do bebé na maternidade florestal.
O meu braço sangrava um pus aguarelado.
Deus, pus?! Já?! Ainda agora o feri.
Corri mais cem metros, que se transformaram em mil, em milhões, em batimentos cardíacos irregulares, que o meu ouvido captava.
Interessante, não ouvi o esquilo a grasnar, porém, ouvi cada compasso do coração… do meu a galope, e do do puma a trote, numa calmaria tempestuosa.
Perto, o rio translúcido clamava…
— Inspira…
… por mim.
Mergulhei nas águas geladas, com um sabor acre a pastel-de-nata num natal amargurado.
O Puma…
— Expira…
… desistiu da caça, ficou na borda do rio, esperançoso que eu me afogasse.
Não afogo.
— Mas afogas, já afogaste — vozes, a gritarem, a arranharem o interior do crânio, lembrando um cadáver num caixão enterrado na praia. Necessito de sossego.
Nas forças que me restavam, entre o martelar desenfreado no peito e a dor desarticulada nas pústulas, nadei em direção à outra margem. A corrente tentava levar-me com ela, rio acima, em direção à nascente, à criação.
Não quero ir.
Sentei-me no areal de musgo e rochas. O som era hipnotizante, gotas de água a choverem diretamente do rio para o firmamento, onde desenhavam constelações invisíveis.
Do outro lado deste universo minúsculo, o gato negro, puma, ou lá o que aquela coisa fosse, continuava fixo em mim, tão fixo como a teia a observar a mosca.
Ignorei-o.
Criei uma rede de lianas com os restos contaminados de uma árvore, cujo maior sonho era ter sido uma astronauta treinada para voar até ao núcleo do planeta. Com os ramos, acendi uma fogueira.
Já não voas.
e foquei a atenção numa criatura.
Era bela, estava nas rochas, deitada, a exalar um bálsamo tão inebriante, que me entediava.
Pesquei-a. Revelou-se sendo uma Tágide.
— Uma Tágide? No Douro?
E porque não? Se digo que a pesquei, é porque pesquei.
Ela gemeu-me uma melodia sedosa, apelando aos poetas e aos pumas riscados, enquanto a assava num fogo lento.
Tinha fome.
Imagem gerada com recurso a ai no website https://www.craiyon.com/#