As vozes
Dezembro 15, 2022
Carlos Palmito
São onze da noite, estou sentado na mesa da cozinha, lá fora o vento uiva e a chuva incessante continua na sua tentativa de afogar o que resta de humanidade nesta selva de betão.
Enrolo um cigarro pacientemente junto a uma lareira há muito extinguida, no exterior um trovão ribomba, sucedido do clarão do relâmpago que sempre o acompanha.
Acendo o possível futuro cancro.
— Faz-te um bem danado — são engraçadas as falas na minha cabeça.
— Amanhã deixo — respondo às vozes que me sussurram constantemente, sabendo de antemão que a primeira coisa que farei mal saia de casa pela manhã é acender outro.
Pego na garrafa de whiskey da bancada e encho mais um copo, que engulo de um trago.
Companhia far-me-ia bem, alguém com quem falar, nem que fosse no silêncio das minhas palavras.
— Os calados são os mais perigosos! — as vozes continuam o seu trabalho a infernizar-me a vida, mas têm razão, talvez, quem sabe, se eu falasse mais, as ouvisse menos.
Contemplo a folha que teima em permanecer branca, escrever faz-me bem, sei que sim, acredito que sim, o papel é o meu confidente, a única companhia que resta.
— Que te posso dizer hoje, meu amigo?
— Que enlouqueceste de vez, a falar para um papel.
Merda para as vozes, por que não se calam?
A pia da loiça está cheia de vestígios das refeições que consumi durante o dia, comidas rápidas, práticas, um monte de lixo que me pesa na barriga e me deforma o corpo.
Talvez devesse mudar a dieta, seria bom e far-me-ia bem, tenho a certeza disso.
— Amanhã…
As vozes riem-se… sem palavras, simplesmente fazem troça de mim, por favor… calem-nas.
— O que vale é que para ti, é tudo amanhã — continuam elas depois do seu ataque de riso. — Já pensaste que pode ser essa a causa de não teres nada hoje?
Chega, esmago a ponta do cigarro no cinzeiro a transbordar, levanto-me, meio azamboado, embriagado, a cama clama pela minha presença faz tempo.
No quarto dispo a roupa, deito-me, desligo a luz, fecho os olhos, quero sonhar, sempre me fez bem.
— E achas que te vamos deixar? — novamente elas, as vozes que nunca se calam.
De todas as coisas que me fazem bem, o silêncio delas seria a cereja no topo do bolo, a minha liberdade suprema, mas não, elas não se vão, estão acorrentadas a mim e não me largam, que nem lombrigas no intestino grosso.
A chuva continua a tombar, pequenas partículas de H₂O a esborracharem-se contra as persianas do quarto.
Companhia far-me-ia bem, amor far-me-ia bem, alguém a meu lado, a abraçar-me no coração da escuridão, simplesmente a ouvir-lhe a respiração pausada enquanto adormece, acompanhada pela melodia do suicídio das nuvens contra as janelas.
— Onde estás? — indago à cama e às mantas.
— Estamos aqui — respondem-me as vozes.
Mas porque não se calam?
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Texto criado no âmbito dos desafios da Ana de Deus, no seu belissimo blog https://rainyday.blogs.sapo.pt/
Este é o 52 semanas de 2022 | tema 50 - 5 coisas que te fazem bem
Será que conseguem encontrar as 5 que aqui adicionei?
P.S. Imagem encontrada na NET