Cinco Milissegundos
Novembro 06, 2023
Carlos Palmito
Naquele momento, ele via a sua vida intensamente. Tão bela e brilhante,
tão ofuscantemente cega, a ponto de queimar a retina nas tonalidades
de um clarão laranjo-acinzentado. Ele via as mentiras a abraçar as verdades,
tão perfeitas, tão serenas, alinhadas lado a lado numa lunar brisa uivante.
O pequeno cilindro metálico viajava a uma velocidade de 350 metros por segundo.
Sentia um arrepio na derme, os poros levantados e o suor a brotar, lambendo o orvalho.
Sentia o aroma dos negros cânticos de amor daquele elefante sentado num galho
no pomar da madrugada. Via a mosca numa peça de ballet, aplaudida pelo mundo.
Dois metros, cinco milissegundos, e uma vida inteira refletida numa ponta metálica,
oca como a sua existência. O tempo abrandou nas gotas dum chafariz, em câmara lenta;
e ele viu-se a si mesmo. Viu-se na corrida da qual foi premiado, violenta, sangrenta,
um minúsculo espermatozoide em direção ao óvulo num idílico poema em caligrafia itálica.
Beijaram-se nas trompas de Falópio, onde se metamorfosearam num zigoto,
onde se tornaram um, e apenas um, onde se tornaram ele, o homem do poema.
Durante os nove meses seguintes, dançou suavemente ao som das músicas de cinema,
ouviu baladas de encantar e histórias de terror. Ouviu sussurros presos num marmoto.
Ouviu as odes e as canções de embalar da sua mãe. Sentiu-lhe as dores e enjoos,
enquanto flutuava pacificamente no ácido amniótico, como numa moca de heroína.
E depois, tudo se alterou, o seu mundo perfeito foi trespassado por uma corrente cristalina,
por um terramoto, até que foi expulso do corpo da progenitora. Era o final dos seus voos.
Daí, viu o seu primeiro dia na escola a escorrer da memória daquele objeto
metálico, em câmara lenta, na frente dos seus olhos. Nesse dia sentiu-se um herói,
como num livro de aventuras, feliz por ir conhecer pessoas num mundo que se constrói.
Aprendeu a desenhar números e letras, a vocalizar fantasmas aprisionados em alfabetos.
Dois metros, cinco milissegundos, e neles contemplou o seu primeiro beijo
escondido nas sombras de cal das paredes da escola primária, tinha sete anos.
Era uma criança que nadava no rio, que caçava na floresta, que tecia planos
numa tela de seda e carmesim, era um nenúfar perdido e enclausurado num bocejo.
E o cilindro trouxe-lhe a sua primeira namorada, a menina de cabelos pretos,
a rapariga de sardas vincadas e um sorriso do tamanho da própria alucinação.
Trouxe-lhe os dias chuvosos em que ambos se enrolaram no colchão da perdição,
trouxe-lhe as memórias dos duetos, dos poemas rabiscados, dos planos e panfletos.
Trouxe-lhe o adolescente que comprou o seu primeiro veículo, um carro fosco,
O seu orgulhoso meio de transporte para muitas festas, inúmeras alegrias e ressacas,
o companheiro alado em dias de tempestade na viagem de tonalidades opacas
que a sua vida se tornara. Foi ele que o conduziu até ela… a bela e o tosco.
Avançou no tempo até ao seu casamento, até à mulher do: “Até que a morte nos separe”.
Levou-o para a igreja, para o “Sim!” perante o pastor, para os anéis, para a lua-de-mel,
para o bairro; para a sua filha que nasceria; para uma vida no rodopio de um carrossel,
transportou-o para os aromas de pão e bolo pintados num quadro em tons pastel-açúcar.
Ouviu as primeiras palavras da sua princesa, elas eram um amor adocicado por leite morno;
viu-a crescer, sair do ninho para voar na liberdade das suas asas, planar no desconhecido.
Contemplou o nascer dos seus netos a refulgir na ponta oca que o destino lhe houvera tecido.
Apercebeu-se do castanho-escuro dos seus cabelos ser agora um tom cinza sem retorno.
Dois metros, cinco milissegundos, uma garrafa de vinho tinto numa mão cheia de esperanças;
na outra, um ramo de orquídeas… fariam cinquenta anos de casados neste mesmo dia.
Uma bala viaja a uma velocidade média de 350 metros por segundo. O tempo é uma enguia,
que desliza nos pântanos da vida. É uma linha de raciocínio, um compasso, duas danças.
E ele voltou ao estágio normal, correu como um pálido rio, pintado de vermelho-escuro,
em direção à sua têmpora. Viu o cano da pistola a cintilar numa ácida e deturpada narrativa,
o cilindro metálico era uma intransigente bala de ponta oca, veloz como uma locomotiva.
Era o cruel antagonista que lhe levaria as aspirações e os sonhos para o outro lado do muro.
Sentiu o sabor amargo da laranja a azedar-lhe o estômago; serena, a cheirar a jasmim,
nenúfares e pólvora. A cheirar ao destino, à cessação do contrato que tinha com Deus.
Sentiu saudades sobre o que não iria ter, e, num piscar de olhos, disse o último adeus.
Sentiu-se abençoado por todos os segundos que pode existir neste imaculado jardim.
A bala atingiu-o na fronte, entre os dois olhos, perfurando-lhe o crânio na lentidão
dos seus 350 metros por segundo. Fragmentou-se, expandiu-se, arrastando com ela
toda a vida daquele ser; os ossos fraturados, o tecido cerebral, o sangue… numa tela
macabra. Levando-lhe as preces a uma entidade invisível numa derradeira expiração.
Até lhe estraçalhar a traseira da nuca, numa fissura do tamanho do punho de uma criança,
de onde irrompeu, numa cascata infindável, uma pasta viscosa que fumegava na escuridão.
Uma mistura das suas entranhas, um misto de massa encefálica, cabelos, sangue, desilusão,
ossos, e a vida que lhe foi refletida por um objeto metálico. Abriu os braços. Aceitou a dança.
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