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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

Amar Até à Última Estrela

Novembro 29, 2023

Carlos Palmito

vista-do-barco-na-agua-com-mau-tempo.jpg 

Num reino de emoções etéreas, onde o amor dança na fronteira entre sonho e realidade, vejo fogos fátuos, fatalidades e afeições que não se consomem. Vejo o teu beijo aproximar-se, com a fúria de um vendaval… sou uma pena que se atira no poço em busca de desejos, e o meu desejo é o teu respirar ofegante junto à minha derme, num bosque vespertino, onde as sombras escorrem o pesar agonizante das almas que queriam mais, que queriam tudo, penadas, penosas… Se as amo? Amo… te.

Contas-me sonhos e histórias, cantas-me baladas de hienas e tufões. Sou o teu ouvinte, o teu acelerar do ritmo cardíaco, sou o que vês quando estás perdida na chuva, e tu… és o meu tudo, o perfume que só eu sinto, o arco-íris nas tonalidades da explosão de mil galáxias, a derradeira razão do reencarnar. Pudesse, e na próxima vida seria a lamparina que ilumina as tuas letras, que te alumia a escuridão. Pudesse, e na próxima vida seria o teu livro.

Oferto-te vidas, a minha, as minhas, pois em mim vivem muitos, vivem biliões, biliões de balões a flutuar no interior de uma caverna. Vem, amor, vem até mim, hoje, ontem, sempre, vem até ao sonho, que esse será eternamente nosso.

O teu sorriso assombra as minhas fronteiras, devasta as terras áridas do deserto nuclear em que me escondi, qual escaravelho acobardado, em busca de cores. As árvores germinam indiscriminadamente, as fontes alimentam as heras e musgos. As silvas e espinhos rasgam-me a voz, ferem-me a visão, mas insisto, persisto, continuo, nu, a correr desenfreado em direção à voz que me guia.

Toco-te mais profundo que num ato carnal, mais dentro, mais selvagem, mais gelado que um glaciar, e sopro. Sopro, qual ciclone, sobre a chama da vela da paixão ardente. Vejo-te metamorfosear num tango sublime, acima das estrelas cintilantes dos teus olhos.

E tudo está bem.

Sentemo-nos então amor, nos prados azuis do oceano que será o nosso castelo, nos espinhos dos arbustos frutívoros.

Come uma amora, amor… sente-lhe o sabor açucarado mesclado com o meu sangue.

No palácio do rei dos bruxos ergueram uma bandeira negra, nela estava escrita a profecia.

Celebremos, amor. Fecha os olhos, sente o aroma dos anos a correrem no jardim de Éden, sente o amor que te declamo na voz de um mudo.

No céu, uma estrela cadente chacinou uma civilização.

Poderíamos ter sido nós… mas não fomos. Nós somos os imortais no sopro de um amor platónico.

 

Imagem do Freepik

Ode ao novo mundo - Parte 2 de 2

Novembro 12, 2023

Carlos Palmito

Para melhor entenderem o poema, ou a tentativa de epopeia, aconselho a lerem primeiro a "Ode ao novo mundo - Parte 1 de 2". 

Tenho andado a criar um mundo ficticio, de raiz. Esperem mais poemas com base nele. Espero sinceramente que gostem, e que comentem. 

A todos, o meu abraço. 

fine-art.jpg 

O primeiro problema encontrado, foi a migração forçada para as profundidades,

a necessidade de pessoas com conhecimento, de mão-de- obra, de planificação,

o espaço reduzido, o aceitar ou recusar indivíduos na marcha fúnebre para a escuridão.

Como se poderia dizer um não a alguém, sabendo que esse não significava mortandades?

 

Eram necessários agricultores, biólogos, médicos, engenheiros, geólogos,

eram necessárias pessoas com capacidade física e mental para sobreviver,

gentes autossuficientes, que soubessem acatar ordens… era isso, ou morrer.

Também eram necessários guias espirituais, atores de circo e psicólogos.

 

Eram necessários pequenos focos de luz, de esperança, faróis no meio da intempérie.

Foi duro, foi penoso; diria moroso. Contudo, o tempo era mais escasso que os recursos.

Mentiria se dissesse que não existiram batalhas, confrontos e inflamados discursos.

Mentiria com quantos dentes tenho nesta boca desdentada se não falasse da série…

 

Da sequência de eventos negros, de mulheres com os seus filhos de fraldas,

de advogados de fato e gravata, de velhos a cheirarem a vinho e morte,

de pessoas descartáveis no meio da ruína, abandonados à sua sorte.

Os ventos traziam radiação, poeiras cancerígenas ornamentadas com grinaldas.

 

E isso, não aconteceu nem em uma, nem em duas, nem três, nem tão pouco quatro, 

mas em todas as caravanas, todas as arcas de Noé, na mais sombria era da humanidade.

Aconteceu nas praias, nos campos, nas vilas, na casa de Deus, no templo da cidade.

Batalhas ferozes, por um lugar apenas, numa peça concebida na falácia de um anfiteatro.

 

Quando estas caravanas encontraram as grutas, a nova moradia

da humanidade, longe do sol e das estrelas, da vastidão das planícies;

distante dos cumes das montanhas, dos lagos, com as suas superfícies 

geladas, saudaram a noite eterna, despedindo-se para sempre do dia!

 

Foram eleitos lideres, alguns dos quais se tornaram monarcas da sociedade,

a base era o conhecimento, a experiência, a tranquilidade e a coragem.

Noutras paragens, governavam os alfas, o mais forte, mais frio, mais selvagem,

mais tudo, que impunham, dos seus súbditos, regalias imorais e forçada lealdade.

 

Ergueram-se portões na entrada do novo lar, para impedir os bons de entrar

e os maus de sair, ou vice-versa, dependendo da comunidade em questão.

Criaram-se mais e mais pontos de controlo; nada é feito sem uma razão,

lembrem-se, o ser humano é a criatura mais destrutiva do universo, sem exagerar.

 

Uma vez estabelecida a moradia nas entranhas do planeta radioativo,

distribuíram-se tarefas com apoio no que as pessoas conseguiam oferecer.

Os exploradores vasculharam cada centímetro da escuridão, para a conhecer, 

para se tornarem íntimos dos lagos, rios, flora, fauna, num mundo seletivo.

Projetaram-se estruturas subterrâneas com durabilidade suficiente para centúrias,

usando os materiais disponíveis nas cavernas; como, por exemplo, pedras e barro.

Era fundamental a eficiência do espaço, como se fossem flores enfiadas num jarro.

À noite, oriundo destes palacetes dignos de percevejos, ouviam-se somente lamúrias.

 

Estabeleceram-se regras e regulamentos, claros como vodka, para a comunidade,

aplicaram-se mecanismos de resolução de conflitos assegurando a estabilidade,

e a justiça adaptou-se metodicamente a esta realidade que exigia somente lealdade

no meio da escuridão do meio-dia. Qualquer sinal de motim punia-se com severidade.

 

A iluminação foi criada com o que existia, velas, enquanto durassem, depois, madeiras,

trapos rasgados e restos da flora que encontrassem nas caves das suas novas casas.

Quando os relógios de corda anunciassem a noite, as luzes apagavam-se nas asas

dos morcegos. Junto aos acampamentos, para proteger do frio, existiam fogueiras.

 

Com o passar dos anos, foram encontrados métodos alternativos de alumiamento.

Plantas que emitiam luz foram colocadas em locais estratégicos, junto à água dos lagos,

ou a qualquer matéria refletora, sendo aproveitadas, na máxima amplitude, sem estragos.

Os seres mais destrutivos do universo, tornaram-se criativos, embalados pelo som vento.

 

Exploraram-se fontes de água subterrâneas, que, mesmo sendo seguras, confiáveis,

necessitaram de métodos de filtragem, garantindo assim a qualidade da mesma.

A civilização, os seus fontanários, os rios, perdeu-se tudo no visco de uma lesma.

Agora, tremiam de frio nas húmidas paredes da mãe terra. Pálidos, desprezáveis.

 

Outro dos pontos, bem importante, mas bastante desafiador, foi a alimentação.

Primariamente, impôs-se um controlo populacional. Cada casal só podia ter um filho,

um único descendente, visto que os recursos eram diminutos, e a fome… só traz sarilho.

Foram ofertados métodos contracetivos, conselhos, apoio psicológico e orientação.

 

A agricultura no interior das cavernas revelou-se mais uma batalha, bastante intensa.

O espaço diminuto, a falta de luz, o frio, a humidade, enfim… contudo, a perseverança

é a melhor amiga da esperança, juntas, de mãos dadas no abismo, efetuam uma dança

de salão, para os rochedos aplaudirem, e, numa vénia final, desmistificam toda uma crença.

 

Sistemas de cultivo vertical, hidropónico e aeropónico foram estabelecidos,

usando soluções nutritivas e luz artificial limitada, para otimizar o espaço.

Designaram-se agricultores para essa árdua tarefa, que não admitia fracasso.

A eles, juntaram-se aprendizes, para que os conhecimentos fossem mantidos.

 

Conservaram-se sementes em armazéns, preservando os seus genes,

garantindo dessa forma a diversidade genética. Nomearam-se guardiões,

cujo trabalho seria asseverar o bom estado delas, e impedir possíveis ladrões.

Estes fiéis de armazém, polícias de sementeiras, eram pessoas dignas e solenes.

 

Quanto aos alimentos em si, às colheitas; essas secaram-se e armazenaram-se

em condições ideais, sendo, posteriormente, distribuídas no seio da população.

Assim floresceu a agricultura no submundo das cavernas, na lua da escuridão;

assim garantiram-se os pilares da sustentação das pessoas, e estas, saciaram-se.

 

Nem só de vitaminas e minerais subsistem as gentes. Nas Grutas, não era diferente.

A solução encontrada para o déficit proteico resolveu-se através de pecuária e piscicultura,

com a reprodução controlada de animais de pequeno porte; galinhas, coelhos; boa ventura,

esperança e perseverança. O Homem, grandioso no seu ódio, tornou-se um crente.

 

Construíram-se viveiros de peixes e algas nos lagos subterrâneos, galinheiros e coelheiras

em grandiosos salões de pedra, aquecidos e alumiados pelas labaredas de mil archotes.  

Carne, ovos, plantas aquáticas, e até mesmo penas, juntaram-se aos víveres nos caixotes.

O humano estava novamente na sua escalada de poder, criando estandartes e bandeiras. 

 

Contudo, nem todas as sociedades das profundezas terrestres tiveram essa sorte,

esse discernimento, essa capacidade de preparação. Existiram aqueles que nada

levaram. O que pensaram esses iluminados? Que nas rochas existia uma manada

desproporcional de búfalos? Que no negrume, a alimentação abundava, plena e forte?

 

Pobres tolos. O fado bateu-lhes que nem um asteroide em velocidade descendente.

Muitas pereceram de fome, engolidas pelas poeiras siderais da loucura, da dor perene.

Outras… outras tornaram-se parasitas, vagueando pelos ossários ao som da sua sirene,

ao som da sua fúria, da ira. Sobreviveram na pilhagem, na canibalização infecta e doente. 

 

Esses senhores da guerra, canibais descomedidos, subsistiram nos valores antigos,

nos valores do pré-apocalipse, na manipulação, na violência, na raiva, no medo.

Foram responsáveis por massacres sanguinários, onde ninguém lhes apontava o dedo.

Esses “filhos do Holocausto”, rumaram para sul, para os pântanos criados sobre jazigos.

 

Mas o verdadeiro inimigo da humanidade, da hipótese dela sobreviver, era outro,

este era invisível, mas quando chegava, dizimava colónias inteiras, doce apocalipse…

a doença, vil e bravia, uma simples constipação significava algo como um eclipse,

um eclipse humano onde se extinguia a luz. O mundo mudou, vivíamos noutro.

 

A medicina era escassa, sem matéria prima, sem medicamentos, sem vacinas.

Construíram-se zonas de quarentena, desenvolveram-se normas alternativas

para tentar mitigar os efeitos das bactérias e germes, em regras progressivas.

Nós, os suicidas, a batalhar contra demónios invisíveis. Oh tempo, tanto que ensinas…

 

A reclusão durou aproximadamente nove séculos, novecentos dolorosos anos,

no decorrer desse tempo, o mundo à superfície alterou-se, adaptou-se, como o homem. 

A fauna, a flora, os cursos de água, as colinas, as montanhas, e os gigantes que dormem.

O que levou o homem a sair do seu buraco? Não sei, contudo, Deus tem os seus planos.

 

O que restava do mundo pré-apocalíptico? Nada, nenhum vestígio do antigo planeta.

A natureza invadiu as metrópoles, a degradação das infraestruturas levou a colapsos,

a topografia mutou-se, os animais mutaram-se, o mundo era de mutantes sem lapsos,

sem laços, apenas partilhavam o ADN dos seus progenitores, viviam neste cometa.

 

A lei dos mais fortes, dos implacáveis, dos lobos do deserto com os seus espinhos,

das hienas e as suas lâminas orgânicas, afiadas que nem diamantes, dos corvos,

das árvores que adormeciam as presas junto aos seus troncos, das sereias, dos povos,

das lesmas gigânticas e o seu visco corrosivo, das baleias assassinas e os golfinhos.

 

O Homem que emergiu, começou a criar povoações, vilarejos, entrepostos comerciais,

trouxe mitos, como o do homem do quarto crescente, histórias contadas com calma,

a esperança de um lugar melhor, esquecendo a doença que lhe está tatuada na alma.

As guerras voltaram, Dustfall caiu… as civilizações sucumbiram em fúrias animais.

 

Contudo, existe esperança, existem mitos a ter em conta, histórias de embalar…

 

E o que aconteceu aos astronautas? Os que estavam no espaço aquando da destruição?

E aos que andavam em submarinos, nas profundezas oceânicas?

 

Existe tanto ainda a contar sobre a perseverança da humanidade, tantos locais a visitar,

mas não vai ser hoje. Os meus olhos estão cansados, os ossos doridos, e a memória

está a tornar-se um pantanal na neblina lançada por cronos. Hoje, fiquem com esta história,

para que a história não se repita. Hoje, vou tentar adormecer sem ter hipótese de sonhar.

 

O ser humano, a criatura mais destrutiva do universo.

Será?

 

Imagem encontrada no Freepik

Cinco Milissegundos

Novembro 06, 2023

Carlos Palmito

bala.jpg

Naquele momento, ele via a sua vida intensamente. Tão bela e brilhante,

tão ofuscantemente cega, a ponto de queimar a retina nas tonalidades

de um clarão laranjo-acinzentado. Ele via as mentiras a abraçar as verdades,

tão perfeitas, tão serenas, alinhadas lado a lado numa lunar brisa uivante.

 

O pequeno cilindro metálico viajava a uma velocidade de 350 metros por segundo.

Sentia um arrepio na derme, os poros levantados e o suor a brotar, lambendo o orvalho.

Sentia o aroma dos negros cânticos de amor daquele elefante sentado num galho

no pomar da madrugada. Via a mosca numa peça de ballet, aplaudida pelo mundo.

 

Dois metros, cinco milissegundos, e uma vida inteira refletida numa ponta metálica,

oca como a sua existência. O tempo abrandou nas gotas dum chafariz, em câmara lenta;

e ele viu-se a si mesmo. Viu-se na corrida da qual foi premiado, violenta, sangrenta,

um minúsculo espermatozoide em direção ao óvulo num idílico poema em caligrafia itálica.

 

Beijaram-se nas trompas de Falópio, onde se metamorfosearam num zigoto,

onde se tornaram um, e apenas um, onde se tornaram ele, o homem do poema.

Durante os nove meses seguintes, dançou suavemente ao som das músicas de cinema,

ouviu baladas de encantar e histórias de terror. Ouviu sussurros presos num marmoto.

 

Ouviu as odes e as canções de embalar da sua mãe. Sentiu-lhe as dores e enjoos,

enquanto flutuava pacificamente no ácido amniótico, como numa moca de heroína.

E depois, tudo se alterou, o seu mundo perfeito foi trespassado por uma corrente cristalina,

por um terramoto, até que foi expulso do corpo da progenitora. Era o final dos seus voos.

 

Daí, viu o seu primeiro dia na escola a escorrer da memória daquele objeto

metálico, em câmara lenta, na frente dos seus olhos. Nesse dia sentiu-se um herói,

como num livro de aventuras, feliz por ir conhecer pessoas num mundo que se constrói.

Aprendeu a desenhar números e letras, a vocalizar fantasmas aprisionados em alfabetos.

 

Dois metros, cinco milissegundos, e neles contemplou o seu primeiro beijo

escondido nas sombras de cal das paredes da escola primária, tinha sete anos.

Era uma criança que nadava no rio, que caçava na floresta, que tecia planos

numa tela de seda e carmesim, era um nenúfar perdido e enclausurado num bocejo.

 

E o cilindro trouxe-lhe a sua primeira namorada, a menina de cabelos pretos,

a rapariga de sardas vincadas e um sorriso do tamanho da própria alucinação.

Trouxe-lhe os dias chuvosos em que ambos se enrolaram no colchão da perdição,

trouxe-lhe as memórias dos duetos, dos poemas rabiscados, dos planos e panfletos.

 

Trouxe-lhe o adolescente que comprou o seu primeiro veículo, um carro fosco,

O seu orgulhoso meio de transporte para muitas festas, inúmeras alegrias e ressacas,

o companheiro alado em dias de tempestade na viagem de tonalidades opacas

que a sua vida se tornara. Foi ele que o conduziu até ela… a bela e o tosco.

 

Avançou no tempo até ao seu casamento, até à mulher do: “Até que a morte nos separe”.

Levou-o para a igreja, para o “Sim!” perante o pastor, para os anéis, para a lua-de-mel,

para o bairro; para a sua filha que nasceria; para uma vida no rodopio de um carrossel,

transportou-o para os aromas de pão e bolo pintados num quadro em tons pastel-açúcar.

 

Ouviu as primeiras palavras da sua princesa, elas eram um amor adocicado por leite morno;

viu-a crescer, sair do ninho para voar na liberdade das suas asas, planar no desconhecido.

Contemplou o nascer dos seus netos a refulgir na ponta oca que o destino lhe houvera tecido.

Apercebeu-se do castanho-escuro dos seus cabelos ser agora um tom cinza sem retorno.

 

Dois metros, cinco milissegundos, uma garrafa de vinho tinto numa mão cheia de esperanças;

na outra, um ramo de orquídeas… fariam cinquenta anos de casados neste mesmo dia.

Uma bala viaja a uma velocidade média de 350 metros por segundo. O tempo é uma enguia,

que desliza nos pântanos da vida. É uma linha de raciocínio, um compasso, duas danças.

 

E ele voltou ao estágio normal, correu como um pálido rio, pintado de vermelho-escuro,

em direção à sua têmpora. Viu o cano da pistola a cintilar numa ácida e deturpada narrativa,

o cilindro metálico era uma intransigente bala de ponta oca, veloz como uma locomotiva. 

Era o cruel antagonista que lhe levaria as aspirações e os sonhos para o outro lado do muro.

 

Sentiu o sabor amargo da laranja a azedar-lhe o estômago; serena, a cheirar a jasmim,

nenúfares e pólvora. A cheirar ao destino, à cessação do contrato que tinha com Deus.

Sentiu saudades sobre o que não iria ter, e, num piscar de olhos, disse o último adeus.

Sentiu-se abençoado por todos os segundos que pode existir neste imaculado jardim.

 

A bala atingiu-o na fronte, entre os dois olhos, perfurando-lhe o crânio na lentidão

dos seus 350 metros por segundo. Fragmentou-se, expandiu-se, arrastando com ela

toda a vida daquele ser; os ossos fraturados, o tecido cerebral, o sangue… numa tela

macabra. Levando-lhe as preces a uma entidade invisível numa derradeira expiração.

 

Até lhe estraçalhar a traseira da nuca, numa fissura do tamanho do punho de uma criança,

de onde irrompeu, numa cascata infindável, uma pasta viscosa que fumegava na escuridão.

Uma mistura das suas entranhas, um misto de massa encefálica, cabelos, sangue, desilusão,

ossos, e a vida que lhe foi refletida por um objeto metálico. Abriu os braços. Aceitou a dança.

 

Imagem retirada do Freepik

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