Os monstros não choram
Setembro 07, 2023
Carlos Palmito
Entre as lágrimas da chuva, vejo reflexos do meu próprio ser.
Vejo as gotas de sal cristalinas que derramei num dia de trovoada, entre as trovas dos trovões e os batimentos cardíacos acelerados de um espírito quebrado, que poderiam encher oceanos nas crateras de Júpiter.
Entre elas, existem risos e rios, subsiste alegria e vida, que tresanda a medos profundos.
Contemplo reflexos espalhados ao vento, na obscuridade da noite, alumiados pelas estrelas inexistentes. Vejo o nascer dos mamutes e das galáxias, e corpos a apodrecerem nos seus infernos pessoais, incapazes de se desagrilhoarem das paredes do destino.
Vejo-me, pedaço por pedaço, rachado, estilhaçado, sem futuro, perfumado pelos prados floridos de um passado. Observo-me, como se cada vestígio da minha alma fosse uma migalha de pão esquecida numa floresta que desabrochou em contos antigos.
E nessas lágrimas cresce a árvore de um pomar envelhecido, a pingar sonhos, a verter pesadelos, a pintar um quadro surrealista, onde as minhocas caçam pássaros, e os gatos voam nas memórias das gotas de um olhar.
Entre as lágrimas da chuva, vejo reflexos do meu ser, vejo rios a transbordar, fogos a florescer, centelhas a extinguirem-se, e o brilho do olhar a desvanecer-se. Vejo a mutação ao longo dos anos, a criação vinda das cinzas de um espelho espatifado.
Aproveito a chuva, aproveito os espelhos de mim mesmo, os espelhos que espelham quem fui, e distorcem quem sou, e caminho, solitário, na minha jornada, tudo o que inicia tende a findar, e tudo o que finda, tende a reiniciar.
Entre as lágrimas da chuva, vejo memórias profundas, para me recordarem eternamente, na minha breve imortalidade, o que eu sou, quem eu sou, como eu sou.
Os monstros não choram.
Pintura de Leonid Afremov - Rainy Afternoon