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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

O Herói Improvisado

Março 12, 2024

Carlos Palmito

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Daniel abriu a gaveta da cómoda do pai, sob o olhar de assombro do seu irmão mais novo.

— Mano, o pai vai-te matar — resmungava o pequeno de cinco anos.

Mas Daniel não queria saber. Olhou para todas aquelas peças, gravata atrás de gravata, pretas, azuis, com listas, com bolas, até uma com corações, e… finalmente, encontrou a que queria. Aquela vermelha, a cheirar a flores, especialmente rosas e orquídeas.

— Mano! — insistia Baltazar, quase a choramingar. Daniel era o seu herói, mas sabia que mal o pai soubesse que ele tinha ido à gaveta das gravatas, ia levar uma sova, e das grandes. — Arruma isso mano, não quero que tenhas problema com o pai.

Daniel continuava a ignorar os apelos do maninho. Pegou na gravata vermelha e atou-a à volta da testa.

— Olha mano, sou o Rambo — vangloriou-se, enquanto pegava na pistola de água que estava em cima da cómoda, a pingar sobre a madeira escura, e a apontava para o maninho. 

Baltazar correu a esconder-se do irmão, numa zona com pouca luz do quarto, para não ser atingido por nenhum esguicho de água.

Ouviram-se passos nas escadas, acompanhados pelo assobiar alegre do pai.

Baltazar arregalou os olhos, e escondeu-se ainda com mais afinco, com os olhos verdes fixos na cabeleira ruiva do seu irmão.

— Rambo ou não Rambo, mano, quero ver o que fazes agora com o Hulk do pai, mal ele entre no quarto.

Malícia Noturna

Setembro 21, 2023

Carlos Palmito

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Na penumbra da cidade adormecida, o amor floresceu entre sombras.

— Olá! — exclamou ele, enquanto lhe contemplava as pernas desnudas, cravadas por caninos de vampiros.

A rapariga de pele azulada saudou com um sorriso de desdém.

— Olá? — interrogou com malicia no olhar, verde, como as dunas da lixeira num caso de constipação crónica de um morcego alcoolizado.

Ele deu um bafo no cigarro, soltando uma baforada que tresandava a cães lavados com tintura de iodo e nêsperas podres.

— Sim, olá — retorquiu, elevando a cabeça em direção à galáxia meretriz que lhes enviara um cometa.

— Que sejamos simpáticos, ao menos na morte.

 

Pintura de George Grosz - Lower Manhattan (1934)

 

Câmaras de Tortura Estética

Agosto 30, 2023

Carlos Palmito

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Alinhados lado a lado, estavam os observadores, os espetadores, os voyeurs, as dores, os apontadores e os marcadores, que a marcaram como gado a abater.

Na outra ponta, existiam aquecedores digitais, batons, bastões, secadores de cabelo, bases de mil cores… exceto as do arco-íris.

— Temos que subir as sobrancelhas, colocar sardas nesta cara lisa. Não chores menina, que debotas o eyeliner — grunhiam os porcos enquanto a observavam, nua, na sua cadeira de eletrocussão.

A tesoura cortava-lhe os fios de vida, os cabelos aloirados, outrora desalinhados como a pradaria. Tentavam os carrascos descobrir a maneira correta de lhe expurgar a alma.

A cada tesourada, era-lhe roubado um pedaço de si mesma. A cada passar de dedos banhados em suor e uma multiplicidade de gorduras que nem o olfato conseguia identificar, era-lhe removido um excerto de si. E ela chorava, e gritava, e berrava, no silêncio e quietude de si mesma.

— Agora, os seios, esses têm que ser elevados, dar mais volume, mais firmeza, que de coisas moles está o mundo farto. Os mamilos estão a apontar para o lado errado, e que auréolas são estas? Que nojeira é esta? — resmungavam eles, os júris da beleza inalcançável. — E esta cintura? Alguém tem que trabalhar nas gordurinhas aqui, que menina que queira ser apresentável, não pode andar nestes tratos.

Na banca existiam bisturis, aspiradores, sangue seco das vítimas anteriores, viciantes aos olhos dos… marcadores.

Enquanto por detrás dos seus óculos de cientistas tresloucados, os seres da beleza etérea, analisavam-na. Um pedaço de barro a moldar, carne para trabalhar, peças de lego nas mãos de uma criança cruel.

— O nariz parece uma batata — sibilou uma barata — partam os ossos, e moldem conforme o livro dos padrões.

— Os ombros estão demasiado largos — resmungou alguém pardo. — Que faremos, que faremos?

— Tudo tem tratamento, incluindo a cicatriz ali, abaixo da pélvis — disse o comandante das aberrações.

Ela era um nada, ali no centro de uma sala de mármore, sentindo os odores de éter, de álcool, de loucura, e da sua própria urina.

Sabia ser o último dia que se veria como ela mesma, dali, seria encaminhada para a sala das crianças educadas, para ser reeducada.

Robôs, todos somos escravizados para nos transformarmos em robôs.

— Que se inicie a dança — ordenou o mestre de cerimónias.

As câmaras apontaram para o meio.

No topo, nas suas casas, a comerem cheetos, pizzas e pilas, viviam os que resmungavam, presos nas suas banhas, banhados nos seus padrões sobre os quais não se regiam, que nem padres numa igreja romana, e babavam-se a observar o espetáculo.

— Por mais nove euros, pode ver a transmissão na íntegra — rosnavam as colunas. — E por apenas sessenta e nove euros por mês, durante o espetacular prazo de dez anos, pode vir ao programa e, ser moldado para a beleza eterna.

 

Pintura de René Magritte - Youth (1924)

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