A última dança do palhaço
Outubro 18, 2023
Carlos Palmito
Justiça, justiça, justiça, justiça, justiça…
Pelas persianas entram as cores azuis.
Sorris, emerges das sombras por onde fluis.
Os holofotes são uma passerelle movediça.
Entrelaças os dedos nos dela, a rainha da eternidade,
observas os teus dentes no espelho da sala empoeirada,
tudo se mantém, os gritos da autoridade, os buracos na estrada,
a respiração, a respiração, a respiração justificada pela idade.
Vejo-me na primeira pessoa, já não sou ele, sou eu, eu…
Ela está ali, nos meus braços, a pintar o chão de vermelho,
Eu, sou eu, eu, já não mandas, triste e obsoleto evangelho.
Serei um rei nas amarguras da vaidade, um rei, um ateu.
O vestido imaculado da noiva tresanda a sangue,
Está sarapintado de rubro, escarlate, morte, desejo
E é como todas as outras vidas, alguém que cortejo.
Não interessam as opiniões, não quero que ele se zangue.
A voz ecoa na cabeça, num trovejar hipnótico, oiço-a nitidamente,
Acima das ordens da polícia, dos filmes mudos no cinema, das sirenes,
do batimento descompassado da pulsação irrequieta dos meus genes.
— Mata, mata, mata, mata, mata, esventra — sussurram. — Sente.
Ela era o meu coração, era o doce nas mãos arrogantes de um recém-nascido.
É um nado-morto, nada, perdição, nada peixe, é morte, e amo-a, e odeio.
— Que colhes tu, filho? — perguntou-me o pastor — Colho o que semeio.
— Saia com as mãos no ar — insistentes, estas criaturas. Enfio um picador no ouvido.
Mas o anjo não se cala, esbanjo o delicado beijo na tez da senhora,
Levo-a até perto da porta, com os pés enfiados nuns sapatos de bailarina,
A lividez do rosto num sorriso rasgado, lambido, nas cores da adrenalina.
Aceno para o interior, com a mão livre sobre a maçaneta, para a cantora.
Sorrio, para não gemer. Foram eles, foi ele, eu sou apenas o instrumento.
Sigo as ordens do criador. Quantas já foram? Justiça, justiça, quero justiça.
Com os pés, desligo a luz, na mesa brilha a aguçada faca, o algodão e a pinça.
Na memória vejo campas, jazigos, flores… vejo os aromas trazidos pelo vento.
Posso sair agora, uma última dança, eu e a noiva cadáver. Ela ama-me.
Eu amava-as a todas, desde a velha obtusa, à magricela roliça.
A todas, a todas as criaturas, mesmo as que berravam: — Justiça!
Mas deus, e o anjo que me sussurra: — Mata, mata — chama-me!
Abro a porta, com a calma enfurecida de um rato, um arauto em águas rodopiantes.
Poderá um assassino em série ter justiça? Efetuar um bailado entre balas e vítimas?
— Liberte a refém — como odeio ordens. Incluindo aquelas dos anjos, doces, intimas.
Dou uma viravolta de dança com ela nos braços, um giro de tango, tudo como antes.
Oiço o cão a embater na cápsula da bala, vejo o brilho laranja acinzentado,
Em câmara lenta, sou a bala, sou a justiça, sou o projétil, justiça por mil.
Sinto-a trespassar-me o crânio, milímetro por milímetro. Sinto-a levar a voz febril.
Calam-se os arcanjos: — Mata — cala-se a justiça. — Mata — para sempre acorrentado.
No último segundo, no penúltimo milímetro, vejo tudo na perfeição, vejo o meu destino,
Vou para o céu, fui um servo fiel. Vou lamber a mão ensanguentada dele, o deus,
Para o esquartejar, arrancar-lhe o rosto e pendurar nos corredores enlouquecedores do adeus.
Para manchar o trono da criação de urina, fezes e excrementos, trucidar a palavra e o hino.
Estraçalhar as asas de todos aqueles anjos que me cantavam em vozes melódicas:
— Mata, mata, mata — e espalhá-las pelos quatro cantos do universo, do infinito…
Serão cantadas serenatas a mim, o fantoche que usurpou o reino de deus. Tudo é finito…
Até mesmo ele, eles, elas, as palavras que me suspiravam impulsos e ações metódicas.
Justiça, justiça, justiça, justiça,
Berra o cão, mia a ave, cala a missa,
Fecham os olhos os missionários,
Choram os vingadores e vigários.
Justiça, justiça, justiça.
A última bala foi reservada, nela lia-se
Demónio
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