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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

A Solidão Serve-se em Xícaras de Chá

Novembro 24, 2023

Carlos Palmito

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— Como estás? — pergunta-me ela.

Eu imagino-lhe os olhos a brilharem de encontro aos meus, uma chávena fumegante de chocolate quente nas mãos, umas meias grossas, de lã, enfiadas nos pés, para combater o gelo que derreteu o lago onde os patos morrem de fome.

— Estou bem! — a resposta é sempre esta, por mais que as estrelas morram num fogo lento, e que o pote do arco-íris seja roubado e violentado, as palavras que seguem a questão, são eternamente aquelas.

Quase lhe consigo ver a deceção em todos os traços do rosto moreno da filha das terras quentes do Sul, agora, escondidas sob um manto de neve negra.

— Não, a sério — insiste. — Como estás? Namoradas? Projetos? A vida?

Olho para as minhas mãos, para o copo de chá a escaldar que me queima as pontas insensíveis dos dedos. Inspiro os seus vapores a saberem a canela e maçã.

Dizem que o olfato é o melhor amigo das memórias ocultas. O gatilho que me forço a pressionar, com o cano encostado à têmpora.

Na Jukebox, James Douglas Morrison declama mais um dos seus poemas.

Através da janela, vejo uma mãe a empurrar o carrinho de bebé em direção ao charco. Ele ri alegremente, na inocência de um céu estrelado.  

Como estou?

Continuo com dois gatos e um sofá; três edredões, um cobertor, e, de quando a quando, um lençol de linho.

Tenho uma garrafa de vinho que me olha de esguelha, pois tanta é a vez que a abandono na solidão fria do armário.

Tenho uma cama que sente a minha falta, manchada de pesadelos e agonias. Maculada pelos desejos infantis de uma vida melhor.

Tenho uma flor morta num vaso partido, e um chuveiro que não consegue limpar a minha alma.

Tenho um aspirador cheio de sonhos e projetos empoeirados.

A minha namorada é uma caneta sem tinta, e a amante uma tecla sem funções.

Tenho espelhos que refletem loucuras, e, no final, tenho os meus cadernos, cada um com uma história minha, uma versão sempre diferente de todas as outras.  

Como estou?

Volto a fixar-lhe os olhos castanhos. Os mais belos de todos. Poderiam ser azuis, verdes, roxos, negros como a pele que hoje envergo, poderiam ser pétalas em vez de íris… nela, seriam sempre os mais belos de todos.

— Estou bem, mesmo — faço uma pausa dramática, aproveitando para engolir um pouco do chá que me escalda o esófago. — Não te preocupes.

Mas, no fundo, sei que se preocupa.

Quem quero enganar?

Quem pretendo enganar?

Ela?

A pessoa que me consegue amar mais que eu próprio?

A única que me consegue ver?

Que se consegue deslumbrar nas cores dos absurdos tons monocromáticos de uma televisão antiga que é a minha alma?

— Está bem — ela beberica o seu chocolate. Lá fora os policias algemam a mãe. Os pássaros estão em silêncio e o salão congela nas chamas de uma lareira que tresanda a uma mistura de mentiras e lascas de madeira.

 

Imagem encontrada no Freepik

Introspecção

Dezembro 29, 2022

Carlos Palmito

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Montemor-o-Novo, 29 de dezembro de 2022

 

 Meu caro eu do passado,

 

 Como estás? Sim, eu sei que é uma pergunta desnecessária, pois estive na tua pele desde o início do ano. Tenho consciência que ainda estás a assimilar tudo o que 2021 te trouxe, e ambos sabemos que não foi pouco, contudo, tenho a informar que se achas que esse ano foi duro, espera só chegar onde estou agora.

Deus não foi benevolente contigo, por vezes parece que te enfiou num torneio de natação sem ao menos te ensinar a nadar. Vai começar logo no teu aniversário, sim, a cinco de janeiro, aí vai ficar a primeira chaga, cuja cicatriz ainda hoje carrego, será difícil sarar por completo, especialmente, sendo nós como somos.

Depois, parece uma verdadeira queda livre, ambos sabemos que muito do que sucedeu estava predestinado, tinhas vislumbres do que viria, pensavas estar preparado, mas a realidade é que não, não estavas pronto para nada do que ocorreu.

Ao longo do ano, muitas vezes vais parar e perguntar quem raios tu lixaste numa vida passada, qual monarca ou bruxa, para te rogarem tal praga. Vais ter que tomar decisões que vão mudar a tua vivência por completo, vais ter que abdicar do teu porto de abrigo, sendo que neste abdicar retomarás o pouco que te resta de sanidade mental. Mas terás consciência que tal ato não foi maldade, antes pelo contrário, foi bondade, para ti, e para o farol que agora ilumina o mundo noutro local. 

Muito do tempo vais estar anestesiado, não por extras como álcool ou até mesmo cacau, vais estar anestesiado mentalmente, vais tombar no chão, e nessas alturas vais erguer os olhos para cima e berrar. “É só isto que consegues? Lamento informar, senhor suprassumo todo-poderoso lorde dos miseráveis e alienígenas, mas ainda estou vivo. Deixa de ser preguiçoso e manda logo tudo de uma vez.”

E então vem o onze de setembro, mais uma data que nunca mais vais ver com os mesmos olhos. Esse dia vai ser complicado, tal como os que o sucedem… é engraçado, mas uma coisa descobrimos também ao longo do ano, que é o fato de não sabermos chorar. A nossa forma de fazer luto é diferente, mas, lá está, somos demasiado silenciosos, não é, Carlos? Guardamos até estrebordar.

O Natal passou, diferente de todos os que tiveste até ao momento, mas nunca lhe ligaste muito mesmo, por isso, quando te deitaste às onze da noite, a lua não estranhou.

Agora, nem tudo foi mau, aliás, dizem que a vida muda a cada sete anos, não é? Sendo assim, até bate certo, é que, não foi uma simples mudança, foi uma espiral de mudanças.

Ao longo do ano, vais estar com pessoas que gostas, velhos amigos que reapareceram na tua vida, novos amigos que vais criando, e laços afetivos. Se de um lado existiu um roubo (apesar que, agora que penso, o roubo não foi a mim, afinal ainda estou vivo.), no outro existiu uma dádiva.

Outra das coisas que 2022 te vai trazer, vai ser o fato de participares em diversas antologias, tanto de poesia como de contos, e nós sabemos a libertação que o escrever nos dá, não sabemos?

A carta já vai longa, e deves estar apreensivo, foi muito o que te disse, sem te dizer quase nada, pensei que poderia dizer mais, mas seria demasiado pessoal, apesar que, isto em nada é impessoal.

Guardo então na minha disquete neuronal todos os eventos, toda a morte, mas também toda a beleza, afinal, acredito que ainda hoje existam vestígios de um totem multiusos criado por ti num areal, numa noite quente de verão.

Sê bravo, meu caro. Vais precisar de muita força, não só física, mas especialmente mental, contudo, no final vais superar tudo, não fosse o caso de eu estar aqui hoje a escrever para ti.

 

Um abraço, que tenho a certeza necessitares,

Carlos Palmito

P.S. não te dei a chave do Euromilhões, porque sei que não jogamos.

P.S. dois P.S., mas este também é necessário. Não construas muralhas à tua volta, como tu dizes, se o caminho fosse fácil, o mundo era aborrecido.

 

Carta criada no âmbito dos desafios da abelha.

52 semanas de 2022 | tema 52
uma carta para a pessoa que foste este ano

Imagem encontrada na net

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