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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

Versos de um pacto

Setembro 05, 2023

Carlos Palmito

bocklinmountainwaterfall1849.jpg 

Olá meu amor. Ontem choveu um pó fininho que me tirou o olfato. 

Tentei encontrar vislumbres da tua silhueta por entre a condensada névoa pictórica

da minha cabeça... Mas não estavas lá! Existia somente um perfume e uma solidão metafórica,

lembrando-me de uma tragédia em três atos, a partir da qual se formou um pacto.

 

Esse pacto era sobre lobos e estrelas, anjos e fadas, camomilas e um rio

que serpenteia nas colinas de Vénus, para desaguar nos meus olhos castanhos.

Sempre foi água, e sal, e riscos prateados a dançar em musicais estranhos.

Sempre foi o leito, o lençol aquoso, o teto lunar, sempre foi superar o desafio,  

 

Superar o destino, extrapolar os deuses, suplantar as constelações.

Sempre foi… amor… foram sombras refrescantes no verão,

foram chuvas de outono e flores primaveris a ornamentar a tua mão.

Foi inverno, primavera, verão, outono… descomplicadas estações.

 

Sempre foi…

um pacto encenado entre três atos.

 

Ontem adormeci, embalado pelos trovões. Tive paralisia do sono, uma vez mais.

Descobri estar aprisionado numa repetição infinda, sem prosas adornadas,

nem rios, nem guizos, em que todas as ações eram interrompidas e reiniciadas.

Sem puder fugir, sem poder gritar, nem chorar, nem gemer, sem adagas nem punhais.  

 

Hoje, tenho gotas de sangue a pingar sobre o livro das memórias,

borrando as letras traçadas a carvão, maculando o pacto, sem calma,

como um punhal enraivecido que se afunda na carne até trespassar a alma.

Hoje, tenho um cálice embelezado com sonhos, desprovido de glórias e vitórias.

 

E num prado, existiu um anfiteatro, existiram dois seres, existia um rio, existia pó de anjos mesclado com fadas… existia um chamamento, existiam figurantes… e no final, subsistiu apenas o pacto.

 

Pintura de Arnold Böcklin - Mountain Landscape with Waterfall (1849)

Câmaras de Tortura Estética

Agosto 30, 2023

Carlos Palmito

53040.webp 

Alinhados lado a lado, estavam os observadores, os espetadores, os voyeurs, as dores, os apontadores e os marcadores, que a marcaram como gado a abater.

Na outra ponta, existiam aquecedores digitais, batons, bastões, secadores de cabelo, bases de mil cores… exceto as do arco-íris.

— Temos que subir as sobrancelhas, colocar sardas nesta cara lisa. Não chores menina, que debotas o eyeliner — grunhiam os porcos enquanto a observavam, nua, na sua cadeira de eletrocussão.

A tesoura cortava-lhe os fios de vida, os cabelos aloirados, outrora desalinhados como a pradaria. Tentavam os carrascos descobrir a maneira correta de lhe expurgar a alma.

A cada tesourada, era-lhe roubado um pedaço de si mesma. A cada passar de dedos banhados em suor e uma multiplicidade de gorduras que nem o olfato conseguia identificar, era-lhe removido um excerto de si. E ela chorava, e gritava, e berrava, no silêncio e quietude de si mesma.

— Agora, os seios, esses têm que ser elevados, dar mais volume, mais firmeza, que de coisas moles está o mundo farto. Os mamilos estão a apontar para o lado errado, e que auréolas são estas? Que nojeira é esta? — resmungavam eles, os júris da beleza inalcançável. — E esta cintura? Alguém tem que trabalhar nas gordurinhas aqui, que menina que queira ser apresentável, não pode andar nestes tratos.

Na banca existiam bisturis, aspiradores, sangue seco das vítimas anteriores, viciantes aos olhos dos… marcadores.

Enquanto por detrás dos seus óculos de cientistas tresloucados, os seres da beleza etérea, analisavam-na. Um pedaço de barro a moldar, carne para trabalhar, peças de lego nas mãos de uma criança cruel.

— O nariz parece uma batata — sibilou uma barata — partam os ossos, e moldem conforme o livro dos padrões.

— Os ombros estão demasiado largos — resmungou alguém pardo. — Que faremos, que faremos?

— Tudo tem tratamento, incluindo a cicatriz ali, abaixo da pélvis — disse o comandante das aberrações.

Ela era um nada, ali no centro de uma sala de mármore, sentindo os odores de éter, de álcool, de loucura, e da sua própria urina.

Sabia ser o último dia que se veria como ela mesma, dali, seria encaminhada para a sala das crianças educadas, para ser reeducada.

Robôs, todos somos escravizados para nos transformarmos em robôs.

— Que se inicie a dança — ordenou o mestre de cerimónias.

As câmaras apontaram para o meio.

No topo, nas suas casas, a comerem cheetos, pizzas e pilas, viviam os que resmungavam, presos nas suas banhas, banhados nos seus padrões sobre os quais não se regiam, que nem padres numa igreja romana, e babavam-se a observar o espetáculo.

— Por mais nove euros, pode ver a transmissão na íntegra — rosnavam as colunas. — E por apenas sessenta e nove euros por mês, durante o espetacular prazo de dez anos, pode vir ao programa e, ser moldado para a beleza eterna.

 

Pintura de René Magritte - Youth (1924)

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