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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

O pesadelo do deserto sombrio

Outubro 30, 2023

Carlos Palmito

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O vento uivava no deserto, soprando a poeira de uma terra devastada, enquanto John, um pistoleiro solitário, cavalgava em direção à cidade-fantasma de Dusthaven.

Daqui até às linhas de água, ainda iam muitos dias, e a água que carregava desaparecia na velocidade alucinante de um comboio fantasma, parecendo evaporar-se sob o sol escaldante das areias intermináveis.

A última povoação pela qual passou estava deserta, excetuando alguns ossos de tempos antigos. O poço secara, e os únicos animais nas proximidades eram intragáveis. Lesmas de metro e meio, deixando um visco corrosivo, corvos com asas envenenadas, e as matilhas de lobos com pelo eriçado, espinhoso, que projetavam sobre as suas presas, paralisando-as. Dizem que a paralisia do veneno deles, durava quase dois dias, e as dores após eram lancinantes. 

Parou perto de uma casa abandonada. Possivelmente um antigo posto de trocas comerciais.

Dizem as lendas, que após a guerra nuclear, quando a sociedade tentou erguer-se, foram criados vários destes postos. Era o local onde os mercadores vendiam as reservas que possuíam.

Essas mesmas lendas referem também que a tentativa de a civilização voltar, durou menos que uma década. Muitos grupos bárbaros começaram a levantar-se na poeira radioativa, e tudo o que traziam com eles era morte.

Analisou meticulosamente cada detalhe dos escombros. Viu paredes em colapso, um telhado parcialmente derrocado, feno apodrecido, o esqueleto de alguém algemado à cama, uma faca enferrujada, e diversas manchas acastanhadas, lembrando sangue seco. Teria que servir. A noite estava prestes a cair, e ele não se queria aventurar em Dusthaven na escuridão.

Conduziu a sua montaria para dentro das paredes que, apesar de se encontrarem em ruínas, ainda os poderiam proteger das criaturas que caçam ao luar, e esta, ia ser uma noite de lua vermelha.

Dos alforges tirou o resto da ração do seu fiel alazão, fez-lhe uma festa ternurenta no focinho, como quem diz: “Eu sei, amigo, eu sei. Eu também tenho fome. Amanhã de manhã, se a conversa do velho demente for certa, teremos as nossas provisões restauradas. Dusthaven, disse ele”. 

John McCallahan volta a analisar o local, a façanha de ter conseguido atingir os quarenta e cinco anos, não foi por descuidos. A única vez que os teve, custaram-lhe a alma. Não queria voltar a perder fosse o que fosse.

A estrutura, apesar de mostrar bastantes pontos de rutura, e algumas partes em escombros, conseguiria servir de fortificação.

Nesta parte da casa onde se encontravam, o telhado ainda era semi-existente, poderia fazer uma fogueira para afugentar o frio gelado que apenas os espectros do deserto conheciam, sem que a luz dela desse nas vistas. Não queria, de todo, chamar a atenção de um grupo de bárbaros que pudesse estar nas imediações.

Arriscou, juntou algumas tábuas secas num canto, com trapos apodrecidos que encontrou e restos de tudo o que pudesse arder, retirou as pedras do bolso das calças, que friccionou uma com a outra, até estas faiscarem e atearem um dos trapos. Daí, foi fácil manter o fogo aceso.

Tira a sela do animal, e coloca-a junto a uma das paredes, divide a água com o cavalo, no momento exato em que o sol é engolido pelas areias infinitas do deserto, concedendo ao planeta uma tonalidade de fogo.

Retira do bolso esquerdo da camisa uma pequena bolsa, abre os cordões, contudo, dela, apenas vem o aroma do tabaco inexistente. Como lhe apetecia fumar um. O último que fumou foi com o velho, nas ruínas de uma taberna. O velho que lhe falou de Dusthaven. Pagou-lhe a informação com o que, nessa altura, ainda possuía de tabaco. Arrepender-se-ia? Não.

Nada resta nas noites solitárias, senão dormir. E, com isso em mente, o antigo xerife de Coallake, deita-se. Repousa a cabeça na sela, ouvindo o ronco do seu estômago. Do lado esquerdo, encostada à parede empoeirada, coloca a sua espingarda de canos serrados, porém, não sem antes verificar se os dois cartuchos estão na câmara. Do lado direito, à altura da sua cintura, deita a Colt 45, com o cão engatilhado. Afaga-lhe a coronha de madeira, com um afeto que já não possuiu por pessoas. Os humanos são traiçoeiros. 

Do lado de fora, o vento uiva lamentos que nenhum ser consegue entender. O quente transmuta-se para frio, criando uma densa névoa nos areais infindáveis.

Cinquenta quilômetros para norte, uma mulher munida com um arco, observa atentamente a entrada de Dusthaven. Edifícios de madeira, baixos, vielas e becos, areia a invadir o perímetro, e aqueles esqueletos enforcados na entrada. Não gosta do que vê, e muito menos do que ouve. Atrás dela, em silêncio, uma hiena, cuja cauda termina numa lâmina orgânica, saliva em antecipação.

Nas árvores junto ao lago, estavam penduradas cento e cinquenta pessoas, com os pés a dançarem no vazio, embalados pelo vendaval de um inverno avassalador. Na entrada do vilarejo, uma placa dizia: “Bem-vindos a Coallake, população 150”. Um traço a sangue riscava os números um e cinco, como quem diz: população 0”.

— Tu foste o culpado! — pronunciou uma voz feminina no pesadelo.

John, acordou com essas frases, como se fossem lâminas em brasa a penetrarem-lhe lentamente entre as costelas, escavando um caminho doloroso em direção aos pulmões. Abriu os olhos. O cavalo continuava ali, a fogueira era agora apenas brasas. Ao longe, ouviam-se os gritos agonizantes dos corvos a caçarem uma manada de búfalos, que haveram inadvertidamente entrado no deserto.

— Merda! — sussurrou à aurora, sem se aperceber dos olhos que o observavam analiticamente.

Ergue-se num pulo. A curiosa ratazana, que o observava, foge. Entra num buraco existente nos escombros, com o rabo entre as pernas, em direção a um porão oculto. Nele existia mofo e latas de comida intocadas, cuja validade expirara ainda antes do apocalipse.

— Que porra! — sente a derme gelada, cada poro dela a verter gotículas de suor, e os pelos eriçados. Estava habituado a pesadelos, mas a voz da sua mulher, essa era uma novidade.

Apanha as armas do chão, a Colt vai para o coldre, amarrado à sua perna direita. A espingarda, prende-a num invólucro de cabedal amarelecido, nas costas, com a coronha para cima. Assim é mais fácil empunhá-la com rapidez, caso necessite.

Coloca a sela no cavalo, dirige-o para a rua, onde o impiedoso sol lança os seus primeiros raios abrasadores.

Mais um dia na pradaria.

Divide as últimas gotas de água com o alazão, monta-a e aponta-o para norte, à esquerda do nascer do sol. Necessitavam urgentemente de provisões. Sentia a fome devorar-lhe o estômago, canibalizá-lo.

Nesse mesmo instante, Maggie, seguida pela hiena, entram em Dusthaven. Esperaram pela manhã. O ar transportava um aroma adocicado a putrefação, com laivos de gordura a derreter ao sol e, estranhamente, de óleo de palma.

No ponto mais alto dessa cidade esquecida, um ser encapuçado, com o rosto desfigurado por mais batalhas do que as pessoas que vivem nos cemitérios, observa a cena, enquanto lambe o sangue que tinge a sua foice de escarlate. A seu lado está o cadáver de um dos lobos espinhosos, a ser devorado pela montaria do Coletor de Almas. O ser solta uma gargalhada sanguinária.

Maggie O'Donnell ouve a risada, como se tivesse tido origem e fim no seu tímpano. Sentiu o frio trespassar-lhe o lenço negro que lhe cobria o rosto, e leva instintivamente a mão ao arco. A hiena estaca, e rosna para o vazio, com o focinho apontado para oeste. Em sete anos de companhia, Maggie “silenciosa”, jamais vira medo na sua companheira, contudo, ali estava ele, estampado nos olhos do animal.

— Anda — ordenou.

Caminharam pela rua principal, a arqueira com os olhos a perscrutarem todas as janelas, em busca de perigo. Ela conhecera a cidade quase tão bem, como conhecia cada pedacinho da derme da hiena, contudo, em quinze anos, a cidade mudara muito.

“Dusthaven está morto, minha querida. O Coletor de Almas mudou-se para lá.”, dissera-lhe um velho a tresandar a mijo uns dias atrás, enquanto lançava uma baforada de tabaco no ar nauseabundo da taberna.

Nunca percebeu se aquela amostra de pessoa a queria assustar para ela se enfiar na cama com ele, ou, se falaria sério. Até hoje, acreditava na primeira versão, especialmente porque o animal a tentara violar.

Contudo, a dúvida, levara-a a entrar no deserto, e agora, ali estava ele, o seu antigo lar, destruído, engolido pelo deserto, tal como o velho foi engolido pela hiena. Não sem antes sentir a lâmina da cauda dela a trinchar-lhe o peito, como se fosse um peru.

Na quarta interseção da rua, Maggie vira à esquerda, caminha com determinação, sabendo aonde quer ir. A hiena mantém-se na sombra da arqueira, mais calma, porém, atenta ao que a rodeia.

Cinco casas acima, a viela começa a estreitar. Do lado direito surge uma nova interseção. O’Donnel ouve um rosnar gutural vindo das sombras.

A hiena salta imediatamente para a sua frente, recebendo uma saraivada dos espinhos projetados por um lobo. A sua pele dura como um couraçado, repeliu todos os projeteis.

Maggie saltou para a parede lateral, empunhando o arco, e retirando no mesmo instante uma flecha da aljava. Aproveitou o local onde o pé assentou para se impulsionar num novo salto, com a flecha já apontada ao alvo.

“O olho, Maggie, aponta para o olho.” Pensou ela, libertando a seta da corda que estava em tensão máxima. Esta zumbiu no ar, qual mosquito mutante, cravando-se certeiramente no globo ocular do centro da testa do lobo. De lá verteu uma massa disforme, cinzento-avermelhada, contudo, não foi suficiente para o matar.

A hiena atacou com a sua lâmina orgânica, dando tempo a Maggie O’Donnel para subir até ao telhado da casa. Aí, a arqueira posicionou outra flecha no arco, enquanto os dois animais rosnavam e mordiam. A cauda da hiena trespassou o abdómen do lobo, e a nova flecha de Maggie apontava para um dos dois olhos restantes, o esquerdo, verde como o musgo tóxico das cidades costeiras. Inspirou, manteve o foco e libertou esta nova flecha, que foi tão certeira quanto a primeira. O lobo tombou em espasmos, ainda a rosnar.

A hiena manteve-se em posição de defesa. Com os olhos fixos no beco, e o nariz a farejar o ar. Ouviu-se o som de patas a debandarem.

Aquando destes acontecimentos, John encontra-se já a escassos quinze quilômetros, cavalga furiosamente, perseguido por um grupo de bárbaros. Encontrara-os sem querer, a seguir a uma duna, camuflados com um manto da cor da areia.

Balas voam ao seu redor, sentiu uma a zunir perto do ouvido, que lhe furou a aba do chapéu, na sua frente vê a areia levantar, quando é atingida pelos projéteis perdidos.

Na mão direita tem a Colt, enquanto a esquerda segura as rédeas. Olha para trás, aponta cuidadosamente, as balas são um recurso quase tão escasso quanto a água, tem que ter a certeza que cada tiro será fatal.

Prime o gatilho, sente o meigo coice da arma, no momento em que ela grita raivosamente. O tiro é preciso, atingindo a montaria do líder dos perseguidores. Tombam ambos, fazendo com que vários dos que vinham atrás tropecem e caiam. Isso iria dar-lhe tempo. Com sorte, alguns dos cavalos terão fraturado as patas dianteiras.

Vira-se para a frente, ignorando os que saíram ilesos, dá uma batida leve, com as esporas, no flanco do seu alazão, impelindo-o a aumentar a velocidade, o qual ele obedece de imediato.

Na cidade, o Coletor de Almas, continua a observar o cenário, intrigado. Conseguiu ver Maggie e a sua hiena a matarem o lobo, através dos olhos do mesmo. Consegue também perceber John a aproximar-se velozmente, vê-o atrás dos olhos de um corvo que o acompanha silenciosamente. E sorri, o senhor da escuridão sorri perversamente.

— Olá, John — diz, com a sua voz gélida, ao vazio. — Sentiste saudades?

Apenas cinco quilômetros. O alazão espuma de cansaço, contudo, não abranda a passada. Restam apenas três, insistentes, que nem mulas contra a corrente, a dispararem tiros de carabina. Felizmente, a precisão deles é quase tão boa, quanto um cantil de água vazio.

Mesmo naquela distância, O’Donnel ouve o tiroteio. Sai à rua, vinda de uma das casas perto do beco onde enfrentara o lobo. Essa casa pertencera aos seus pais. A última vez que lá estivera, ainda era uma rapariga, sem seios avantajados, nem sonhos destruídos. Fora levada pelo avô, para ser ensinada na mestria da caça. Não funcionou. O velho morreu três anos depois. Tudo o que sabe, aprendeu sozinha.

— Corre Sifão, corre como o vento — ordenava John McCallahan. Uma bala passou ao seu lado esquerdo, mais veloz que o alazão.

Em minutos, passou a placa enterrada pelas areias do tempo, que diria algo como: “Dusthaven, população 3251”.

O que era estranho, para uma terra vazia. Onde estariam todas as almas que ali haveram habitado? Tirando os ossos pendurados no início da cidadela, nada se movia na cidade-fantasma. Bem, nada humano.

Maggie correu para a entrada, seguida pela sua companheira.

No cimo, o Coletor subiu para o dorso da sua montaria, uma mistura de um cão de dois metros, com mandíbulas de aço, e os pés laranja fogo, tendo uma pelagem esverdeada, com espinhos junto ao pescoço.

Sifão estacou mesmo na entrada, numa paragem brusca, que atirou o pistoleiro ao chão empoeirado. Atrás deles, os bárbaros suspenderam a perseguição. Nenhum dos três ousou atravessa a linha invisível que dividia a cidade do resto do deserto.

— Bem-vindos a Dusthaven — gritou o Coletor de Almas.

John sentiu os ossos gelarem. O seu cavalo relinchou em desespero, empinou as patas dianteiras, preparando-se para fugir. Conteve o impulso animalesco.

No beco próximo, Maggie teve a sensação de ser esfolada viva pelo timbre da voz, encostou-se a uma vedação em ruínas, com a hiena a observar tudo ao seu redor, apavorada.  

— Quem? — John conhecia a voz, sabia que sim, apesar de não lhe conseguir associar um rosto.

Apanhou a pistola do chão, observou o seu cavalo, mas nada lhe exigiu. Sabia o quão cansado e assustado ele estava.

— Fica aqui, grandalhão — murmurou-lhe ao ouvido, dando-lhe no mesmo instante uma palmada amistosa no peito. — Já volto.

Seguiu a pé pela avenida. Um vento árido irrompeu pelas vielas, trazendo aromas de degradação.

O sino da igreja emitiu doze badaladas, seguido do rugido de uma besta que Maggie jamais ouvira.

John, viu-a, Maggie O’Donnel, ainda encostada à vedação, apontou o Colt para lá. A hiena colocou-se entre ambos de imediato. Um escudo para a companheira.

— Quem és? — gritou o pistoleiro.

A resposta foi nula, apenas se ouvia o vento a transportar mais areia para aquele local abandonado, onde antes viveram 3251 almas.

— Identifica-te, ou disparo — grunhiu McCallahan. Estava cansado, com fome, irritado.

— Calma — retorqui ela. A hiena rosnou, e, os sinos repicaram novamente as doze badaladas.

— Não tenho calma, ela terminou faz tempo.

— Então nada posso fazer — a hiena iniciou uma passada lenta, mas firme, em direção a John.

A arqueira aproveitou para entrar numa habitação, e retirar uma seta, que colocou firme no arco.

— Eu sou apenas uma pessoa, pistoleiro — continuou O’Donnel. — Não pretendo nenhum conflito contigo. Por favor, baixa a arma — nesse momento, a sua flecha de ponta metálica, estava apontada para o coração do homem, através dos restos de um vidro empoeirado e umas cortinas esfarrapadas.

John não era estúpido. Vira-a entrar na casa, mas sabia que mal apontasse a arma para lá, a hiena saltaria de imediato sobre ele, e a flecha que cintilava atrás das cortinas esvoaçantes, seria liberta da corda. Ele perderia essa batalha, de uma maneira ou de outra.

O Coletor observava a cena, deliciado, através dos olhos de uma mosca que se encontrava pousada na teia de uma aranha. Pobre aranha, não sabia o que a esperava.

— Baixas a pistola?

O homem continuava atento à hiena. Era um risco, sabia disso em cada impulso do seu sistema nervoso, mas não tinha outra hipótese.

Lembrou-se de um detalhe, o lenço negro a cobrir o rosto da mulher. E isso puxou uma memória, um campo esverdeado na entrada de uma floresta. Algo que ele presenciou. Uma menina acossada por canibais. Ela envergava um casaco com um capuz roxo a cobrir-lhe os cabelos e, o seu rosto estava escondido por um lenço negro. Quando o primeiro dos canibais se aproximou, uma hiena saiu do arvoredo, e, com uma única dentada, estraçalhou o braço do devorador de humanos. Seria a mesma pessoa? Recorda-se que nesse dia, tudo o que sobrou dos canibais foram vísceras, e membros esquartejados, espalhados por uns dois quilômetros. Qual era o nome?

— Maggie?

Ela piscou os olhos involuntariamente. Alguém que sabia o seu nome, como era possível?

— É o meu nome — respondeu. — Importaste de baixar a merda da pistola?

Ele resolveu arriscar. Guardou o Colt coldre, sempre atento à hiena.

O sino insistia nas doze badaladas, e o vento corria desenfreado, fazendo retinir antigos caçadores-de-sonhos.

Um silvo agonizante foi ouvido do outro lado da cidadela.

— Chamas o teu cão de volta?

Maggie obedeceu, chamou a sua companheira no mesmo momento em que saía da casa, já com a flecha de volta à aljava. Os olhos da mulher contemplavam curiosamente o estranho que sabia o seu nome.

— Como sabes o meu nome?

— A menina da hiena? — indagou John. — O teu nome é contado ao redor de fogueiras, Maggie. Eu vi-te faz já alguns anos, numa das florestas a sul daqui — apontou para a hiena. — Nesse dia, aqui o teu cãozito…

— Hiena — resmungou ela entre dentes.

— A tua hiena — corrigiu McCallahan —, desmembrou uma dezena de canibais.

A mulher franziu a tez, revelando um pouco da sua madeixa acastanhada.

— Isso foi depois do meu avô morrer — estava perplexa. — Estavas lá? Porque não me ajudaste?

— Com essa coisa ao teu lado, precisavas de ajuda?

— Tens razão, não precisava — pausou a fala por um instante. — Como te chamas? Que fazes em Dusthaven?

John encolheu os ombros, sentindo o reflexo de um espelho encandeá-lo momentaneamente.

— Provisões. Fiquei sem comida e água.

O sino voltou a repicar, agora foram vinte e quatro badaladas. Na base da abadia estava o cão infernal, que servia de montaria ao Coletor de Almas. Encontrava-se deitado, a aguardar o regresso do seu dono.

— Aqui não sei se tens sorte — Maggie arregalou os olhos, puxou do arco instintivamente. — Sai daí, rápido — ordenou, no exato momento em que a flecha era colocada na corda já em tensão.

O pistoleiro desviou-se para a direita, a flecha cortou o ar diante dos seus olhos, atravessando toda a viela, até ficar cravada na parede de madeira de uma casa no outro lado da avenida.

— Que foi isso? — indagou.

A hiena eriçou o pelo, levantou a cauda, ameaçadoramente, e começou a rosnar baixinho.

— Não viste? — perguntou O’Donnel.

Ver o quê?

— Hoje, estão na minha casa, meninos — a voz que emitiu a frase, congelava a própria alma. — Bem-vindos.

John viu um ser sair da sombra, o ser que provavelmente fez Maggie disparar a flecha, e a hiena entrar em posição de defesa.

O homem media cerca de dois metros, de ombros esguios. Na mão possuía uma foice, e os olhos estavam carregados de desejo por sangue.

— Que raios? — mal John completou a pergunta, já uma nova flecha atravessava o ar abrasador, contudo, o Coletor esquivou-se numa velocidade vertiginosa.

— Impossível! — exclamou a mulher, por detrás do lenço que lhe ocultava o rosto.

A hiena mantinha-se ameaçadora, porém, não avançava, estava apenas em defesa. Daria a vida pela sua companheira, mas jamais atacaria deliberadamente aquele ser.

John correu para eles, no momento exato que uma terceira flecha era colocada na corda.

— Esquece isso, Maggie — berrou o pistoleiro. — Fujam.

Os três correram, sob o olhar astuto do Coletor.

— Esta é a minha casa. Onde pensam que vão? — perguntou-lhes, enquanto flexionava os joelhos, para pular em direção ao telhado da casa mais próxima.

Maggie viu a cena, e empurrou John para a esquerda, contra uma vedação de madeira, que se desfez em pequenas tiras ante o impacto.

— Por aí, John, entra na casa e sai pela porta do lado esquerdo — grita Maggie, entrando na casa do lado oposto pela janela. A hiena, por sua vez, salta sobre o edifício, cravando as garras na parede até chegar ao topo. Daí, segue a sua dona do telhado, com a atenção totalmente focada no ser que os persegue, nos telhados do outro lado.

Sifão, encontra uma estrebaria atulhada de feno, entra para saciar a sua fome. Atrás do edifício, existe um buraco incomensurável, repleto de esqueletos humanos. 3244, para ser mais preciso. Juntando aos seis pendurados na entrada, e a Maggie, perfazem o total de 3251 almas.

Na casa, John vê o desenho de uma foice ensanguentada na parede da cozinha, com uma seta a indicar a porta esquerda.

O coletor salta do telhado onde se encontra, para o adjacente. Uma luz refletida por um espelho encandeia-o, fazendo-o falhar o pulo, e esbarrar-se na parede, com um grito de raiva.

Olha em volta, tentando descobrir a origem do reflexo, para apenas sentir o zumbido de uma flecha, tenta desviar-se, porém, a velocidade não foi suficiente. A flecha crava-se na sua perna esquerda, logo acima do joelho. Esganiça em dor. Os monstros sentem dor, não sentem? Contudo, mesmo com a dor, flexiona o joelho e salta de novo para o telhado, sendo novamente encandeado.

Maggie pula da janela do primeiro andar onde se encontra, para a rua, salta uma sebe de madeira, caindo do outro lado, no momento em que John sai da porta esquerda.

— Vamos John — ordena.

No topo dessa mesma habitação, está a hiena, de pelo eriçado, e com a lâmina orgânica da sua cauda a dançar furiosamente de um lado para o outro.

— Viste a luz? — perguntou John, enquanto a seguia.

— Vi — replica ela, sem abrandar o passo.

A hiena salta para o chão, para os acompanhar de perto.

Nos telhados, o Coletor de Almas continua a perseguição, mantendo também atenção à possibilidade de mais reflexos luminosos.

Após a primeira curva, John puxa Maggie, inesperadamente, para trás, travando no mesmo instante. A hiena rosna, saltando para a parede da casa do lado esquerdo, da qual pendia uma bandeira carcomida pelo tempo e pelos vermes da escuridão.

— Que foi? — interrogou a mulher bruscamente. — Temos que continuar.

— Olha — o pistoleiro apontou para o chão.

Maggie não viu nada, contudo, não chamavam John de “Olhos de Águia” em vão. Nada lhe escapava.

Ele pegou numa pedra, e atirou para a frente. O chão esmoronou, numa abertura de quatro metros de largura, por outros quatro de comprimento. Do buraco vinha um odor fétido, a visco de lesmas, mais corrosivo que as chuvas ácidas.  

— Uma armadilha? — Maggie encontrava-se embasbacada. — Como a percebeste?

— A areia estava amontoada de forma diferente — John passou as mãos pelo cabelo. Nem se recorda onde perdeu o chapéu. — Não parecia natural, e depois — aponta para a casa onde a hiena está cravada —, essa bandeira.

— A bandeira? — a arqueira escancara os olhos. — Merda, tensa razão. EU vi pelo menos mais umas três.

— Onde?

O Coletor pula para o chão nesse instante. John pega na espingarda, aponta e prime o gatilho. Acerta apenas na parede da casa, pois a velocidade estonteante do ser, e os reflexos sobrenaturais, permitiram-lhe saltar para o lado, derrubando uma cerca e enrolando-se num emaranhado de arames farpados.

— Lá atrás — Maggie aponta para a direção onde o Coletor está.

— Raios — o pistoleiro analisa o perigo. Normalmente, uma criatura demoraria algum tempo a desenlear-se daquela armadilha, contudo, aquele ser não era uma criatura normal. — Acho que conseguimos. Anda, tive uma ideia. Leva-me aos locais.

Correram velozes, passando do lado mais afastado do Coletor, que grunhia no seu timbre de gelar ossos.

Maggie conduziu o pistoleiro e a hiena pelas ruas, entrando em dois becos, até pararem perto de uma casa com uma bandeira pendurada, a esvoaçar nos ventos ardentes do meio da tarde. Estranhamente, desde o início do confronto, que o sino da igreja estava em silêncio.

— Ela percebe ordens? — perguntou o pistoleiro, apontando para a hiena. Esta olhou para ele com desprezo.

— Sim — retorquiu Maggie.

John contou-lhe o plano de ação, e o que teriam que fazer. Ela acenou que sim, concordava.

Na abadia, o cão infernal acordou.

No emaranhado de arames farpados, o Coletor conseguiu finalmente libertar-se, ouvindo o disparo de uma espingarda. Correu nessa direção, estraçalhando todos os obstáculos que encontrou. Estava farto da brincadeira.

Quando entrou no beco da bandeira, viu John a entrar numa casa na rua ao fundo. Não fazia ideia onde Maggie e a hiena estavam, mas não fazia mal.

Desde que John o expulsou de Coallake, que desejava apanhá-lo. Conseguiu apanhar toda a população da terra, violara a sua mulher, e dera a filha à sua montaria, que a devorou lentamente, pedaço por pedaço. Os berros delas eram um doce na sua memória. Os berros de toda a população, antes de morrerem, eram o bálsamo mais inebriante que existia. Mas John não estava lá nesse dia. Sortudo do pistoleiro.

— John, John, não sentiste saudades? — indaga em escárnio.

Como resposta, vê o clarão da Colt, e a bala, da qual se esquiva habilmente. Avança um passo, dois passos, três. Vê a bandeira a esvoaçar à sua esquerda. Dá mais um passo, e, para por completo.

— Uma armadilha, John? A sério? — liberta uma gargalhada demente, capaz de arrastar bebés por nascer numa correnteza de pesadelos. — Achas que eu caía nisso?

Uma flecha sai do edifício adjacente, da qual ele se desvia num passo de dança.

Detrás de si, surge a hiena a correr. Colide contra ele, com toda a sua força, empurrando-o para a armadilha. O ser tenta fincar pé, mas a força do animal é avassaladora, como os ventos das tormentas.

Berra em pânico. Poderão acaso os demónios sentir pânico? Mas é tarde demais, sente-se a perder o equilíbrio, e cair no buraco do visco. Como último recurso, agarra a pata dianteira da hiena. Esta gane em desespero.

Maggie salta de imediato do primeiro andar, onde se encontrava oculta, para auxiliar a sua companheira.

John corre também para eles, em desespero.

— Não te aproximes Maggie — grita.

O cão infernal corre em direção a eles. Sabe que no momento que o seu dono morrer, ele também morrerá. A alma deles é uma única. Uma união concedida por um xamã tresloucado numa taberna a tresandar a morte e desejos macabramente mórbidos.

A hiena afasta Maggie com a cauda, e está prestes a suicidar-se, deixar-se levar com o Coletor de Almas para o abismo inundado pelo visco das lesmas.

John chega nesse preciso instante. Coloca dois cartuchos na espingarda, a qual direciona para o pulso do ser.

Dispara à queima-roupa. Primeiro um, depois o outro.

Tanto ele, como Maggie vêm a mão do Coletor separar-se do seu corpo, e este ser puxado pela gravidade em direção à sua morte.

Perto, o cão infernal desfaz-se num líquido gelatinoso, vermelho-alaranjado.

— Morreu? — pergunta Maggie.

— Esperemos que sim — responde o pistoleiro. — Não iria aguentar mais uma batalha destas. 

— E agora? — replica ela.

— Sem provisões, nem sei — volta o homem, numa expressão de desolação.

— Acho que sei onde as encontrar — replica Maggie. — Meio dia apenas, para norte.

John olhou curioso, no exato momento em que o seu fiel alazão surge a trote.

— Se é só isso, vamos — montou o seu cavalo.

A hiena levantou a sua amiga do chão com as presas, atirando-a para as suas costas.

Mal deixaram a cidade, uma pequena faísca surgiu no edifício central, chamuscando o soalho com a forma de uma foice.

 

Imagem retirada do Freepik 

Para um outro conto de halloween, este de um amigo meu, sigam para Valletti Books 

Na mata do puma

Outubro 16, 2023

Carlos Palmito

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— Inspira, expira… — gritava-me a mente já esgotada.

Atrás, na mata, ouvia os passos do felino. Um olho azul, o outro branco, leitoso, como a seiva do carvalho adoentado, aquele que tombou há dois dias no lodo azulado de excrementos e dejetos humanos.

A inspiração veio em golfadas rápidas, arquejantes, lembrando as engrenagens de um comboio, ao mesmo tempo que me concedia os sabores de algodão-doce misturados com o perfume aromático de um guisado de raízes, túlipas debotadas, sangue férreo e… pânico.

— A que cheira o pânico? — Indagou o sonho, ou a distorção mental.

Cheira… cheira… cheira a caramelo torrado com um leve sabor de fome.

Corri, corri na velocidade da expiração, sentindo o sol a queimar a derme, que transpirava numa catarata de tinturas tão negras quanto as asas de um mosquito.

Quem me dera que o sol morresse, num segundo apenas. Poderia renascer depois, mas, para já, desejava-lhe, egoisticamente, a morte numa agonia diluvial.

Perdi-me nos pensamentos que vinham em catadupa. Esbarrei contra a árvore. Vou fingir que a vi. Mas vi, tenho quase a certeza.

Será que vi?

Vi! Vi mesmo.

— Mentiroso — a mente não se cala, sempre ali, a morder-me o paladar transpirado.

Ela era rugosa, o que vi era rugoso, castanho, verde, negro…

Negro?

O puma!

Os meus olhos piscaram. Puma?

Olhei para trás. Vi-lhe o sabor ao longe, a correr em direção ao chupa do bebé na maternidade florestal.

O meu braço sangrava um pus aguarelado. 

Deus, pus?! Já?! Ainda agora o feri.

Corri mais cem metros, que se transformaram em mil, em milhões, em batimentos cardíacos irregulares, que o meu ouvido captava.

Interessante, não ouvi o esquilo a grasnar, porém, ouvi cada compasso do coração… do meu a galope, e do do puma a trote, numa calmaria tempestuosa.

Perto, o rio translúcido clamava…

— Inspira…

… por mim.

Mergulhei nas águas geladas, com um sabor acre a pastel-de-nata num natal amargurado.

O Puma…

— Expira…

… desistiu da caça, ficou na borda do rio, esperançoso que eu me afogasse.

Não afogo.

— Mas afogas, já afogaste — vozes, a gritarem, a arranharem o interior do crânio, lembrando um cadáver num caixão enterrado na praia. Necessito de sossego.

Nas forças que me restavam, entre o martelar desenfreado no peito e a dor desarticulada nas pústulas, nadei em direção à outra margem. A corrente tentava levar-me com ela, rio acima, em direção à nascente, à criação.

Não quero ir.

Sentei-me no areal de musgo e rochas. O som era hipnotizante, gotas de água a choverem diretamente do rio para o firmamento, onde desenhavam constelações invisíveis.

Do outro lado deste universo minúsculo, o gato negro, puma, ou lá o que aquela coisa fosse, continuava fixo em mim, tão fixo como a teia a observar a mosca.

Ignorei-o.

Criei uma rede de lianas com os restos contaminados de uma árvore, cujo maior sonho era ter sido uma astronauta treinada para voar até ao núcleo do planeta. Com os ramos, acendi uma fogueira.

Já não voas.

 e foquei a atenção numa criatura.

Era bela, estava nas rochas, deitada, a exalar um bálsamo tão inebriante, que me entediava.

Pesquei-a. Revelou-se sendo uma Tágide.

— Uma Tágide? No Douro?

E porque não? Se digo que a pesquei, é porque pesquei.

Ela gemeu-me uma melodia sedosa, apelando aos poetas e aos pumas riscados, enquanto a assava num fogo lento.

Tinha fome.

 

Imagem gerada com recurso a ai no website https://www.craiyon.com/# 

O último amanhecer

Setembro 29, 2023

Carlos Palmito

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No crepúsculo da esperança, a luz da redenção brilhou mais intensamente.

— Vasco, vira aí à direita.

Ele olhou para a direita. Lá existia apenas uma parede com uma pomba branca a abalroar uma nave espacial. “Liberdade ou morte”, lia-se em letras escrevinhadas com ramos de oliveira.

— Como assim direita? — o ar era pesado, o céu escuro, com gotas de água sujas, contaminadas, intermináveis. 

Leonor passou por ele a correr, entrando direta na parede. O miúdo de capuz branco esperou ouvir o baque do embate, contudo, ela atravessou a pintura como se fosse névoa.

Ramos de oliveira? Como podem saber o que é uma oliveira? Morreram todas faz muito. As terras são estéreis, os livros foram queimados, e o sol…

A iluminação do beco faiscou e explodiu. As pedras refletiram um clarão acima do fumo denso que enlaça todo o planeta.

— Despacha-te — ouvem-se passos a correr na entrada do beco. Vasco vê um objeto redondo a embater na parede à sua frente e cair aos seus pés. Lá cintilavam pigmentações na intermitência do verde e azul, lembrando um céu que se extinguiu nos primórdios da guerra nuclear e das explosões solares em impulsos eletromagnéticos.

Uma mão saiu da parede, e agarrou a criança de olhos verdes, puxando-o em direção à abertura camuflada por um holograma.

— Temos que ir, corre, estamos quase lá — Leonor arrastou o seu filho pelo labirinto de escombros. O capuz branco da criança deslizou, revelando os seus caracóis ruivos.

Junto à pomba, a granada de plasma explodiu, desativando momentaneamente a imagem. Os seres reptilianos adentraram por entre o lixo, numa perseguição implacável.

Após o quarto holograma, logo a seguir aos restos ainda fumegantes de um caça de guerra intergaláctico, Leonor travou abruptamente, colocando a mão no peito do seu filho, sentindo-lhe o coração a palpitar assustadoramente rápido, para o obrigar a parar.

Os seus olhos azulados perscrutaram o horizonte. Uma cratera desmesurada estendia-se aos seus pés, com um fundo negro, de onde um visco acinzentado a tresandar a decomposição se libertava.

— Merda — gritou desalmadamente. — Merda, merda, merda. Eu dormi contigo, meu filho da puta, eu dormi contigo para estares aqui a horas.

Ouviu-se o som de um disparo. A mulher empurrou o seu filho para a direita, saltando para trás no exato momento em que um feixe de luz passou por eles. Sentiu o aroma das suas sobrancelhas chamuscadas, e ouviu um novo disparo.

Sobre uma das asas do caça, estava um dos repteis, a apontar para eles e esganiçar algo incompreensível. Meio século, e ainda ninguém compreendia o grunhido daqueles porcos.

O segundo feixe atingiu uma rocha à esquerda da mulher dos olhos azuis, desintegrando-a por completo. Leonor levanta-se num impulso. — Tens apenas três segundos — gritou-lhe o cérebro. Arrancou Vasco do chão. A criança choramingou em pânico.

— Mas onde está aquele cabrão? — como resposta à sua pergunta, o som de uns motores a propulsão, existentes apenas em naves espaciais, oriundo das profundezas da cratera, acompanhados por uma luz branca, sobrepôs-se ao estranho dialeto dos repteis de duas pernas.

Leonor saltou com o filho para trás de um dos veículos de levitação magnética que enferrujava solitário na chuva ácida.

Do abismo, surgiu um caça alienígena. As luzes brancas do mesmo iluminaram o local. Na terceira janela de um dos poucos edifícios que se mantinham em pé, existia roupa abandonada, farrapos imundos do que em tempos teriam sido as vestes de alguém.

— Eu fodi contigo, gordo merdoso, como pagamento para me tirares daqui — berra a mulher do olhar cristalino como o céu dos antepassados. — Fodi contigo, vendi o meu corpo a troco de segurança — as lágrimas irrompem numa fúria desmedida. Os holofotes do caça fixam-se nos répteis.

— Mãe? — Vasco abraça a progenitora, a sua fortaleza — Não chores — o queixo da criança estremece, a voz treme, mas tenta manter-se forte — Não chores, por favor.

— Desculpa amor — ela recompõe-se. Ainda estão vivos, o mundo continua cáustico, mas… ainda estão vivos. Limpa as lágrimas que insistem em tatuar estradas no seu rosto sujo de fuligem. Sorri para a criança e beija-lhe a testa, enquanto um estalido ressoa no vazio.

O alfa dos répteis apontou para o caça, dois outros colocam uma arma nas costas, apontando diretamente para aquela réstia de esperança. O da frente pressiona o gatilho, o da traseira tenta manter o ariete firme, para não falharem o alvo. Atrás deles surge um feixe de energia que incinera todo o amontoado de lixo à sua volta, tornando pedras e escombros em cinzas. Da frente, um raio de luz é libertado, brilhando ao ponto de Leonor ter que desviar o olhar, e cobrir na totalidade a visão do seu filho. Cegueira branca. Ao longo dos anos já viu muitos assim, cegos na brancura do universo, como se vivessem afogados no leite materno das prostitutas da desolação. O caça faz uma manobra evasiva, esquivando-se para a esquerda ao mesmo tempo que subia verticalmente, ao mesmo tempo que colocou as armas inferiores em modo de ataque.

— Protejam-se — esta ordem veio direta do caça, em português puro, numa voz que Leonor desconhecia na totalidade, amplificada por uma mistura de megafones e colunas. Uma adaptação estranha colocada na nave alienígena. Não pensou duas vezes, simplesmente reagiu. Afastou-se com o seu filho o mais possível dos repteis. Um dos prédios esmoronou, elevando poeira no ambiente denso, a brilhar em constelações desconhecidas.

Das armas começaram a ser projetados feixes coloridos, em rajadas rápidas, que incendiavam tudo onde embatiam. Os repteis tentaram recuar, contudo, em vão. A mira de quem quer que manobrasse as metralhadoras de plasma era perfeita. Em dois minutos, tudo terminara.

Os restos dos cadáveres dos extraterrestres jaziam fulminados, libertando golfadas fumegantes a cheirar, estranhamente, a flores mortas, na poeira da última cidade a cair perante eles.

A nave planou por momentos sobre os corpos, com as asas perigosamente perto dos destroços. O holofote sondou os recantos escuros, em busca de sobreviventes.

Leonor, estava confusa. O seu filho encontrava-se de olhos fechados, a trautear uma música que a sua mãe lhe costumava cantar antes de adormecer.

O caça desiste da busca, recua, para pousar em segurança. A porta principal abre-se. De lá surge uma mulher.

— Onde raios estás tu, gordo merdoso — murmura Leonor.

— Venham — grita a estranha, para que a sua voz se fizesse ouvir acima dos motores do caça. — Depressa. Tenho a certeza que vêm aí mais lagartos.

Vasco sente a mão da sua mãe a puxá-lo. Ainda cantarola a música. Uma fuga ao mundo a meio de uma estranha sonoridade e poema, onde as pessoas são felizes, o céu azul, e as pombas significam liberdade. Um mundo que jamais presenciou.

— Anda amor!

— Despachem-se — resmungou o homem no megafone.

Leonor pega no filho ao colo, e corre em direção à salvação. Subitamente a estranha ergue em arma, apontando-a na direção deles. Pressiona o gatilho.

— Que merda? — Leonor estacou por completo, uma estátua com a cria ao colo, erigida no centro caótico de um planeta moribundo. Do céu, uma nova explosão solar cintilou acima das nuvens radioativas. Os olhos azuis da mulher seguiram o feixe que quase lhe acertou, e percebeu o alvo dele. Um réptil que tentara contorná-los. Voltou a correr, até à entrada do caça, uma onda mulher de cabelos escuros os esperava.

— Entrem.

Entraram. Lá dentro estava um ambiente iluminado por parcas luzes amareladas, e uma enormidade de leds coloridos.

— Quem são vocês? — indagou a mãe.

— Um minuto — respondeu o homem, que se encontrava no local do piloto. A estranha entrou. A porta fechou-se, a nave subiu no imediato, rápida que nem uma gazela, deixando a cidade destruída e os répteis para trás.

— Eu sou Pedro, ela é Laura — Tu és a Leonor, não és?

Leonor semicerra os olhos. Vasco senta-se num banco lateral, e coloca a trava de proteção. Pedro e Laura. Os nomes não lhe eram estranhos.

— É ela sim, Pedro — Laura expressava vitória na entoação das palavras.

Subitamente, Leonor escancara os olhos. O azul deles parece brilhar em meio à obscuridade, lembrando um lince das zonas polares.

— Vocês são os lideres dos rebeldes?

— Fomos — corrige Pedro. — A rebelião morreu. A batalha derradeira ocorreu ontem, nos esgotos. Vi irmãos de armas desfeitos numa papa viscosa. Mas derrubámos aquele ninho de lagartos. Contudo, só eu e ela — aponta para Laura, que esboça um sorriso —, sobrevivemos. E, como vês — nesse exato instante a nave trespassa as densas nuvens radioativas. Acima delas, o sol pulsa em explosões constantes. —, o mundo está a ir desta para melhor. Os cabrões do governo mentiram-nos, uma vez mais.

— Como sabem o meu nome? Como sabiam onde estava?

— Apanhámos uma transmissão — Laura sorri, mas nos seus olhos existia tristeza e raiva apenas. — Américo, era o humano. Ele tentou vender-vos aos canibais.

O gordo merdoso, ali estava o nome dele, o reles que fodeu Leonor.

— Filho da puta — resmungou entre dentes.

— Não te preocupes. Sei como pagaste a proteção dele. Mas, se te consola, neste momento ele está a ser preparado para o jantar. Gordo como era, vai alimentar uns quantos dos dentuças afiados.

Leonor esboça um sorriso amargurado. Como pode ser tão burra a ponto de confiar numa ratazana como o Américo? Como se permitiu a colocar Vasco numa situação como aquela? Os seus olhos azulados fixam-se na escuridão do espaço.

— Para onde vamos?

— Para o Santa Maria.

— Mas, já está no espaço. A frota está toda no espaço.

— Eu sei, mas tenho uma carta na manga — acende um cigarro, iluminando o rosto, dá uma baforada profunda, quase como um suspiro melancólico. — E ela chama-se Isabela.

— Quem? — indaga Leonor, em confusão.

— Não interessa.

Pedro ativa os restantes propulsores, libertando o caça para cima da velocidade da luz. Os olhos fixam-se no painel de instrumentos, num led que pulsa numa cadência perfeita, no canto superior direito.

 

In – “A Odisseia de Santa Maria: Além das Estrelas” um conto de ficção científica que estou a matutar.

Passa-se antes deste conto: No silêncio das estrelas , mas depois deste: Destino Incerto

 

Imagem gerada por AI

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