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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

No limite da sanidade

Setembro 22, 2023

Carlos Palmito

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No coração da tempestade, encontramos a coragem que há muito perdemos.

Guilherme encontrava-se nesse momento deitado sobre um manto de musgos, que ocultava pedras afiadas e escarpas que se desenhavam no abismo e terminavam no infinito. O olhar azulado contrastava com a penumbra do céu. Na sua cabeça dançava a voz do velho desdentado, filho do lixo, neto da saliva, ancestral nascido de um útero apodrecido, numa repetição claustrofóbica: “No coração da tempestade…”

— Ah velho. Desdentado, louco, arruinado — murmurava Gui. — Tenho a certeza que nunca encontraste o teu temporal.

O homem, nos seus quarenta anos de existência, ergue-se. Todo o ser que tomba terá que se levantar, algures no tempo… no temporal, na chuva que não vem, e em histórias canónicas de deuses e mortais.

Na perplexidade das gotas que teimam em putrificar a sua alma, ainda sente o cheiro, o perfume que tresandava a freiras asfixiadas no sémen de um monstro que se julgara humano.

— Eu tentei, Inês, juro que tentei — cerra os punhos, os quais soltam uma faísca esverdeada, que o presenteia com o aroma de memórias reprimidas. — as faíscas tornam-se num fogo fátuo, que brilha na penumbra da noite e revivem fantasmas ocultos na sua perceção anestesiada pelo vinho flácido, derramado pelo falo dos gnomos de um jardim adocicado com ossos de cães e unicórnios.

— Eu tentei! — berra ao céu, negro como a alma danada de um deus esquecido. Explode dele, com ignição nos punhos, uma centelha de energia, que incendeia o bosque. A história tem uma tendência suicida para se repetir, tal como o homem tem uma tendência masoquista para rebentar com as rochas lambidas por mortos.

— Não, Guilherme, não tentaste! — respondeu o vazio numa voz esganiçada e atormentada, que lembrava a de Inês, a freira que fora violentada por um demónio, a que tentara expurgar o servo do submundo da existência mundana. — Rebentaste numa força cósmica, tal como agora. Rebentaste e mataste todos os órfãos, toda a igreja, o bairro, a cidade. Ainda lhes sentes o odor? Carne queimada? Lágrimas evaporadas? Sentes? — e era raiva, raiva de uma serva de deus, que lhe rasgava os locais mais recônditos da alma.

— Mas — tenta o ser de mia idade justificar-se.

— Não existe mas — grita o zero, a penumbra da noite iluminada por uma floresta em chamas, em ebulição, que nem a sopa dos pobres. — Nada justifica o que fizeste. Perdeste o controlo. E não foi a única vez, pois não? Lembras-te da putéfia na tua cama, naquela cidade longínqua, habitada por elfos e sereias? Virou cinza nas tuas mãos — e ri-se, a merda do vazio consegue rir, Inês ri-se… — Fogo sagrado, dizia o padre… pobre ignorante, que derreteu junto com a estátua de Cristo.

Uma estrela cadente, ou uma águia incendiada, risca as nuvens de fumo, para morrer no oceano viscoso dos pântanos submergidos pelos que dominam o planeta, os reis do inferno. Guilherme semicerra os olhos… o azul da íris tenta percecionar, ver onde ele estará… o seu predador, sua presa.

Encontra-o, escondido entre uma amoreira e uma corça decapitada, com um sorriso mordaz entre as mandibulas, e um ódio descomunal ao homem que se tenta erguer.

Aponta-lhe um dedo, do qual é projetado um raio mesclado nos cromados do escarlate e o esverdeado, escaldante, com a capacidade de derreter diamantes.

 — Hoje é o teu fim, minha besta — berra. Inês está muda, a freira que virou demónio, ou o demónio que virou freira. Nas narrativas, muitas vezes nem se percebe onde se misturam os elementos, e quem é o quê. As narrativas adaptam-se consoante as sociedades, e nesta sociedade, a narrativa era apenas uma. — Hoje liberto-me. Sem medos. Sem tristezas, sem culpas, sem passados, sem nós.

Aquando da colisão da energia cósmica com o demónio que fora alguma coisa, que controlara Guilherme, que o afundara nos bares da floresta, nas lixeiras das cidades, e nas camas de Sodoma, o planeta suspendeu. Tudo parou, por um minuto… O minuto da libertação das amarras, o minuto da coragem.

Assim, enfrentam homens os Deuses… enfrentam demónios, e vencem… assim, morre o cobarde, morre a dúvida, falece a tristeza.

— Eu juro que tentei, Inês.

 

Pintura de M K Anisko - Burning Forest (2010)

 

Malícia Noturna

Setembro 21, 2023

Carlos Palmito

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Na penumbra da cidade adormecida, o amor floresceu entre sombras.

— Olá! — exclamou ele, enquanto lhe contemplava as pernas desnudas, cravadas por caninos de vampiros.

A rapariga de pele azulada saudou com um sorriso de desdém.

— Olá? — interrogou com malicia no olhar, verde, como as dunas da lixeira num caso de constipação crónica de um morcego alcoolizado.

Ele deu um bafo no cigarro, soltando uma baforada que tresandava a cães lavados com tintura de iodo e nêsperas podres.

— Sim, olá — retorquiu, elevando a cabeça em direção à galáxia meretriz que lhes enviara um cometa.

— Que sejamos simpáticos, ao menos na morte.

 

Pintura de George Grosz - Lower Manhattan (1934)

 

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