Sonhos Criogénicos
Setembro 13, 2023
Carlos Palmito
À meia-noite, o espelho revelou o reflexo de um mundo desconhecido.
Lucas observou abismado. Atrás de si, refletido pelo pedaço de vidro que costumava mostrar-lhe as feições ossudas, existia um areal a perder de vista, onde as ondas morriam num compasso perfeito. Suicidas a lamberem o solo áspero da praia.
No céu haviam duas luas, e o brilho rosa mesclado com púrpura e verde, de uma aurora boreal.
Olhou para trás, num instinto, mas apenas subsistia a sua cama, num quarto desarrumado, e o som da televisão a reportar o crescimento rápido do sol.
— É o fim do mundo! — anunciavam os falsos messias do apocalipse.
— A comunidade científica está perplexa com a velocidade a que a expansão está a suceder, contudo, não é alarmante — declarava um homem enfezado.
Contudo, nada do que vinha da televisão interessava a Lucas, desde a morte de Sofia, que o mundo colapsara por completo. Nesse dia, desistiu da mineração de Marte, vendeu a empresa e toda a frota espacial. Abdicou dos sonhos de Júpiter, e da possibilidade da exploração além cosmos.
Voltou novamente a atenção para o espelho, sentiu o aroma da maresia e ouviu o som do próprio oceano. No céu, as estrelas dançavam uma valsa ensanguentada, entre colisões siderais e frotas dissolvidas a átomos. Fechou os olhos.
—Pai? — Lucas reconheceu a voz de imediato. — Que fazes aqui?
— Filha? Amor? Sofia? — abriu os olhos, a alma, abriu a mão e a garrafa de vodka tombou na solidão que era a sua vida. Recuou quatro passos, e a alcatifa metamorfoseou-se em areia.
— Volta para trás pai, não venhas — era medo, na voz aguda da menina loira.
No alto, uma gaivota guinchou, virando a atenção para as figuras, a habitante e o invasor.
— Senti a tua falta — murmurou o homem entre soluços, e lágrimas que corriam o rosto barbudo. — Fiz tudo o que podia por ti. Tudo. Só não vendi a alma ao Diabo, porque nunca o encontrei. Doenças alienígenas… microrganismos estranhos, disse o médico.
— Eu sei pai — retorquiu a criança. No alto, mais gaivotas juntaram-se à primeira, e o universo piscou a vermelho. — Mas não é a tua hora, volta para trás, por favor, tem força. Aguenta.
— Não quero… não consigo mais — a tristeza afunda até o mais bravo dos titãs. A este homem, afogou-o no abismo.
— Não, pai, não podes — Sofia olhou para as ondas, que espumavam raiva. — Eu amo-te, e tu sabes que sim — desta vez desviou o foco para algo atrás de Lucas, uma cabana com um espanta-espíritos na entrada. — Contudo, ainda não chegou o momento. O teu coração funciona, e tens tatuado com nanotecnologia, toda a nossa vida. Tens isso no cérebro, e nos hologramas que tanto miras.
Cheirava a vazio e bolos de cenoura. Uma gaivota faleceu em pleno ar, e foi devorada pelas outras, ainda antes de tocar o areal. Tudo o que restou foi uma polpa vermelha de sangue e penas.
— Mas…
— Não há mas — Sofia correu em direção ao seu pai, aquele que tanto a protegeu, o que a criou, após o falecimento da sua mãe durante o parto, e empurrou-o com força, em direção ao quarto, ao mundo real, ao mundo antes do espelho… à dor existencial.
O homem barbudo escorrega na alcatifa, e bate com o crânio no espelho. A dor é lancinante, intensa. Mas menor que a que sentiu ao ver o espelho quebrar-se em milhares de fragmentos… viu a filha desaparecer uma vez mais. Sentiu as forças a faltar, o oxigénio a ficar rarefeito, e desmaiou.
Lucas abre os olhos, respira pausadamente, e sente frio. Está nu, deitado numa cúpula.
Um vermelho escuro pisca interminavelmente, e uma voz robótica berra nos altifalantes.
— Colisão iminente, colisão iminente. Necessária ação manual.
Despertou da crio-hibernação, na frente da sua pequena nave, existia o abismo do espaço, e seres num multicolorido brilhante, que dançavam tangos selvaticamente.
— Quanto tempo estive em suspensão criogénica? — indaga o homem.
— Cinquenta e quatro anos, três meses e sete dias — responde o computador de bordo.
— Relatório de situação atual?
— Danos nos módulos de propulsão esquerdos, superiores e inferiores. Sistema de navegação avariado. Galáxia desconhecida — volta de novo o computador. — Tem uma comunicação pendente vinda da nave “Santa Maria”.
— Coloca no visor, por favor — voltou Lucas, enquanto desligava o resto dos propulsores.
— Comandante?
— Diz — retorquiu o homem para a máquina, visivelmente irritado.
— Quem é a Sofia? O nome não consta na base de dados.
Imagem retirada da NET