Onde a saudade se desvanece
Outubro 24, 2023
Carlos Palmito
Ergo o cálice à lua nova. Brindo no vazio com um copo onusto de nada,
poluído pelas memórias que se foram, de uma vida que nem me pertenceu.
Bebo o sangue imortal daquela entidade omissa, que me amou e esqueceu.
Contudo, a aranha continua a tecer as suas odes de diamante pela calada.
Sou uma microscópica semente secular, sacudida do capote do pescador,
uma mosca varejeira, aprisionada num emaranhado viscoso de teias.
Sou o cobarde no castelo de areia da fétida solidão, a pular nas ameias,
a corromper-me na anamnésia da perdição, do calor impulsionado pela dor.
Se me quisesses magoar já o tinhas feito. Tens as armas perfumadas por flores,
conheces todos os buracos para a minha dor, todas as palavras, todas as mentiras,
todo o sofrimento e angústia, como a raiz de um dente exposta. Viras a arma, miras,
mas nunca atiras. O coração está visível, ribomba num arco-íris desguarnecido de cores.
Não, não me queres magoar. Nem tentaste.
Tenho consciência de ter sido um príncipe no lodaçal,
uma supérflua tonalidade embaciada por uma nota musical,
contudo, sei o quão profunda e intensamente me amaste.
Os ossos sagrados do filho de Deus estão agrilhoados no fundo do oceano,
acariciados por algas, ostras, intempéries, abandonados na gélidas correntes,
à deriva, como eu… sei nadar, sei flutuar, sei morrer, sei… sei tudo o que sentes,
só não sei como sobreviver, esqueci-me de como se chora neste Universo mundano.
Aqui, onde a saudade não possui residência.
Misericordiosa seja a recordação.
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