“Mil e uma maneiras de assassinar a gramática”
Outubro 24, 2024
Carlos Palmito
— Era uma vez…
— Queres começar a contar a história dessa forma?
— Quero. Qual é o mal?
— Já nem as infantis começam assim, é esse o mal.
— Mas queres ouvir a história ou não?
— Está bem. Conta lá, quero ver onde isto vai dar.
— Era uma vez à muito tempo atrás…
— Se era ‘há muito tempo’, é lógico que era atrás. Pagam-te por número de palavras, é?
— Mas podia ser ‘à frente’…
— ‘há muito tempo à frente’? Oh meu Deus!
— Que foi?
— Não foi nada, não te preocupes. Acho só que vi um neurónio a desaparecer.
— O quê?
— Continua lá, bora. Não me faças perder mais tempo.
— Certo. Era uma vez à muito tempo…
— E insiste nesse 'à', porra! Não vês que está errado?
— Errado? Porquê?
— Porque é com ‘h’ ó sua besta!
— E isso faz alguma diferença?
— Ainda perguntas? Claro que faz, meu anormal.
— Está bem, senhor sabichão. Posso continuar?
— Se conseguires não ofender o português, por mim tudo bem.
— Qual português?
— O português que te ensinaram na escola… Caso tenhas ido, começo a ter dúvidas.
— Bem, vamos lá. …há muito tempo atrás, num reino muito distante…
— Em quantos mais clichês vais cair?
— Crochês?
— Ai porra, que este é burro. Clichês, lugares-comum, chavões…
— Hã???
— Esquece. Vamos lá ouvir o resto do teu ‘crochê.
— O crochê não fala, e não tenho aqui agulhas nem linhas.
— Nem agulhas, nem linhas, nem gramática, mas estou curioso. Continua lá essa porcaria.
— Desde que não me interrompas mais.
— Prometo, a minha boca é um túmulo. Olha, um ‘crochê’.
— … num reino muito distante, uma princesa que subiu para cima…
— Parou. Nem fales mais.
— Porquê?
— Subiu para cima? Já viste subir para baixo, minha aberração gramatical?
— Sim, eu tinha uma rã que subiu para baixo da mesa.
— Estás a brincar?
— Não, a sério, ela vinha da cave, e subiu as escadas para baixo da mesa.
— Preciso de um café. Alguém que me traga um café. O meu reino por um café, se faz favor, e aproveitem e levem aqui o senhor ‘subiu para cima’ embora. Façam-no sair para fora!
— Mas já não queres ouvir a história?
— Qual história?
— A que estava a contar, porra!
— Ah, essa. Olha, tenho um título perfeitinho. Queres saber qual?
— Eu estava a pensar…
— Não penses, que isso faz-te mal, olha: ‘As mil e uma maneiras de matar um editor’, o que achas?
— Deixas-me continuar? EU acho que é um best-seller. Vá, ouve lá.
— Um best-seller para bestas de sela, só pode. Deixa ver se isto melhora, já agora. Perdido por um, perdido por mil.
— …para cima de uma nuvem, suave e delicadamente como a ramagem nas aragens das areias asperamente aveludadas…
— Aiiiiiiiiiiiiiiiiii.
— O que foi, o que foi?
— Os meus ouvidos.
— Que se passa com eles?
— Sofreram uma overdose de adjetivação.
— Uma o quê?
— Overdose. Porra, não gastes os adjetivos todos numa só frase. Deixa alguns para os outros escritores. Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.
— Mas…
— Olha, sabes que mais? Falas ali com a assistente, pedes uma formação básica e voltas daqui a uns anos. Pode ser que aí já saibas escrever.
— Mas…
— Nada de ‘mas’. Daqui a uns anos voltas aqui e falas-me da rainha que subiu para cima.
— Princesa.
— O quê?
— Nem estavas a ouvir a história. Olha. Fartei-me. Vou-me embora. Vou procurar outra editora.
— Olha ele! Amuou. A porta é ali. Vai e não voltes. Adeus. Cadê o meu café? Já agora, um comprimido para as dores de cabeça e um psicólogo. Quem me mandou a mim ir para editor? Bem que podia ter seguido a vocação de asfaltador, se é que isso existe.
FIM
#Imagem feita com recurso a AI