Mendacidade
Dezembro 22, 2022
Carlos Palmito
Com um objetivo em mente, a criança passa em frente às janelas do bairro residencial.
Do lado de fora ouve as risadas e o carinho de uma noite festiva, cheira a carne assada, batatas cozidas, doces e iguarias, bálsamos inebriantes para quem como jantar apenas teve lixo.
— O comer está arruinado — ouve, vindo de uma das habitações. — O peru ficou demasiado seco e as couves pouco cozinhadas.
O seu estômago ronca num queixume lento de quem já está habituado a nada ter, enquanto os outros têm festa, ele tem um lápis mental onde escreve a sua história, gostava de não saber sonhar.
Vira a esquina, entra no adro da igreja, onde os sinos repicam alegria.
A missa terminou e uma enchente submerge as ruas alumiadas pelas renas e estrelas luminosas, quem sabe, para iluminar a podridão e o desrespeito do humano para com seu próprio irmão.
Vê os homens que o não vêm, filho da rua, abandonado e desprezado por aqueles que saem do templo. Quanto terão pago para expurgarem os seus pecados?
Abre caminho entre eles, ouvindo conversas alheias, palmadas nas costas, beijos nas faces rubras do frio existencial.
— Acreditas que tiveram a coragem de me oferecer um pijama? — comentava uma rapariga ao telemóvel.
— E a mim, que me ofereceram? — pensa o menino. — Nada, o vazio embrulhado numa fita invisível, um chuto e um empurrão quando passo demasiado perto, o olhar de repugnância e nojo quando no meio da minha invisibilidade me conseguem detetar. Troco pelo pijama, pode ser?
Ele é uma partícula de pó a olhar para o espanador, escorraçado da humanidade, afastado de outras crianças, mendigo de nascença, uma estrela cadente prestes a extinguir-se.
Aumenta a velocidade, sentindo um ardor nos olhos, saudade no coração.
Como se pode ter saudade de algo que nunca se teve?
Em ruas mais afastadas do centro, a enchente começa a diminuir, continua o percurso em direção ao seu objetivo, existe um areal que quer visitar, longe da cidade, das luzes e das palavras que continua a captar.
— Este ano decidimos não celebrar o natal — ouve de duas senhoras roliças e pintadas que nem pavões. — A avó morreu, ela era o Natal, não faz sentido continuar sem a sua presença.
Coitadas, nem sequer pensam que antes da avó delas morrer, muito provavelmente antes delas mesmas terem nascido, já a avó da avó delas tinha morrido, e nem por isso a pobre senhora desistiu do Natal.
Ingratas, que usam como desculpa esfarrapada a morte de um ente querido, como se fosse ele o adesivo da família. Esquecem todos os sacrifícios que a mesma fez, todas as mágoas que teve escondidas nos sorrisos. Esquecem que a roda da vida continua, e para fazer sentido, alguém tem que tomar o lugar… Nunca esquecer os que morreram, mas tomar o seu lugar.
Já não são crianças, são agora adultas, serão um dia as avós de alguém, serão um dia o Natal de alguém, o adesivo.
Conseguiu finalmente o menino abandonar a cidade, penetrou no pinhal, no areal, caminhou pelas dunas, iluminado pelas estrelas, acompanhado pelo vento, a ouvir as ondas morrerem na costa.
Sentou-se nas húmidas areias do tempo, no alto uma lua gelada brilhava, enquanto que as ondas rugiam vagas sensoriais.
Contemplou o Universo que nunca o escuta, e com as mãos começou a fazer um teatro de sombras, a sua prenda de si para si, um palco onde ele era ator e espetador.
As sombras começaram habilmente a desenhar mundos, um pai natal, um menino jesus, uma noite sombria, as famílias esquartejadas em pequenos pedaços, e espalhadas nos areais desérticos da inutilidade e futilidade humana.
O objetivo foi esquecido, as estrelas apagadas, o menino jesus dado a comer aos cães danados do deserto.
Adesivo é qualquer substância aplicada na superfície, ou em ambas as superfícies, de dois objetos separados que os une e oferece resistência à sua separação.
O seu estava quebrado.
A UNICEF estima que existam aproximadamente 100 milhões de crianças de rua em todo o mundo, com esse número crescendo constantemente. Existem até 40 milhões de crianças de rua na América Latina e pelo menos 18 milhões na Índia. Muitos estudos determinaram que as crianças de rua são mais frequentemente meninos de 10 a 14 anos, com crianças cada vez mais jovens sendo afetadas (Amnistia Internacional, 1999). Muitas meninas também vivem nas ruas, embora números menores sejam relatados por serem mais “úteis” em casa, cuidando dos irmãos mais novos e cozinhando. As meninas também têm maior vulnerabilidade ao tráfico para exploração sexual comercial ou outras formas de trabalho infantil.
Mas não se preocupem, não sou, nem nunca fui uma criança de rua, simplesmente pretendi mostrar o natal com outros olhos, não é isso que um escritor faz?
Se quiseram saber mais um pouco sobre o meu Natal, existe um texto que redigi faz um ano, inicialmente não o queria fazer.
Mas por insistência da minha querida amiga Joana, e pelo fato de eu próprio não saber resistir ao seu sorriso, acabei por lhe mostrar que
"cor tem o natal."
Criado com o intuito de corresponder ao desafio "o que é para ti o Espírito do Natal" nas 52 semanas de 2022 | tema 51 do blog da Ana de Deus.
A todos vós, um Natal recheado de alegria e regado de amizades.