Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

Lua Azul

Janeiro 06, 2022

Carlos Palmito

268978933_2311752205798381_4508661718446421617_n.p

 

Acordo num sobressalto e levanto-me, estou nu no topo de uma colina.
Lá no alto vejo a lua azul… “Azul?”
Sob meus pés uma vastidão de areia que se prolonga no sentido oposto do precipício, duas portas a flutuarem no nada, e uma balança com um babuíno no seu topo.
Só podia estar a sonhar, sabia isso, a lua não é azul, ou será?
Aproximo-me da balança, sinto uma sede imensurável.
Do nada uma pluma solidifica-se em pleno ar e plana momentaneamente até pousar num dos pratos da balança.
— Bem vindo mortal! — oiço esta voz sobrepor-se ao silêncio desértico em que estava. — Por acaso sabes onde estás? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e apenas senti solidão.
Olho em meu redor tentando perscrutar a origem da voz, mas tudo se mantem inalterável… duas portas, uma balança, uma pena e um coração… estaria aqui este coração antes?
— Fazes ideia de onde estás? — Indagou de novo a voz, agora com uma ponta de irritação no tom. — Ou sabes porque aqui estás? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e conduzi até ao mar.
— Não faço ideia. — respondi a medo, tive receio que a leve irritação se transformasse num ódio bárbaro de um ser que ali não estava.
— Estás na sala das duas verdades. — afirmou o nada com a sua voz possante. A irritação tinha desaparecido. — Este é o tribunal que decidirá para onde vais nesta tua última jornada. — sala? Isto é um deserto, que sala? Tribunal? Que terei feito ontem, além de celebrar o aniversário?
— Que queres dizer com sala das duas verdades? Quais verdades? — no topo de cada porta surgiu uma placa, o inferno numa, o céu na outra — Tribunal? Que aconteceu, que faço num tribunal e porque é a lua azul?
— Quer dizer então que não te recordas de nada de ontem? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e apenas senti solidão, conduzi até ao mar, e fiquei em silêncio no alto de uma escarpa.
— Não. — respondi em voz baixa, receio ou timidez, não sei responder.
— Ontem cessaste a existência física. — continuou a voz docilmente. — Aqui nesta balança está uma pena e o teu coração, que neste momento espera apenas a minha ordem para pousar sobre o prato vazio. — o meu coração reside contigo pequena fada perdida, o meu coração continua no rio e na floresta… o meu coração é teu desde o momento que te vi… sou um risco prateado nos céus.
Sinto uma pontada de dor no peito, levo a mão esquerda lá.
— Cessei a existência física?
— Não te recordas mesmo, mortal? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e coloquei a primeira mudança no carro ainda com o travão de mão puxado. — Qual a ultima memória que tens? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e soltei o travão. — Não importa, não estamos aqui para falar sobre como morreste, mas sim como viveste, como pesa o teu coração. — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e voei num chiar de pneus e cheiro a borracha queimada nesta falésia.
Subitamente o céu tornou-se purpura, a lua continuou azul, o ar inundou-se de um odor adocicado, caramelo talvez, ou seria jasmim? Num estrondo, o coração caiu no prato vago... Nova pontada de dor… O macaco pulou e ululou em regozijo puro, pequenas faíscas doiradas saltaram de ambos os pratos, mas nenhum se moveu. O inferno e o céu eram iguais, mas a lua continuava azul.
— Acho que estamos num impasse, mortal.
— Impasse?
— Acho que afinal esta ainda não é a tua hora. — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e voei, não queria mais fazer anos.
Surgiu uma mão… engraçado, as coisas aqui neste deserto lunar, “Lunar?” parecem surgir no vazio. Ela estalou os dedos.
— A lua é azul porque não é a lua. Ali em baixo está a residência que optaste por abandonar, naquele circulo azul a flutuar no infinito. — casa é onde o amor se encontra, sem ele sou um sem-abrigo. A minha tinha quatro paredes, dois gatos e aquela que escolhi amar e venerar pelo resto da vida, a pequena fada perdida que encontrei estando eu também perdido, aquela que seria eterna em mim, e eu nela. — Vou permitir que regresses lá, mortal… ama, ama como se não existisse amanhã, ama como se ontem tivesses amado pouco, simplesmente ama.
Hoje fiz anos, sabem, hoje fiz anos e vim ver o mar, estou no topo de uma falésia a contemplar a vastidão. No alto a lua é prata e o oceano azul, apesar de a esta hora só ver negro.
Meto a marcha atrás e regresso para onde o amor se encontra.

Mensagens

6 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D