Ecos de um Teatro Silencioso
Agosto 29, 2023
Carlos Palmito
No teatro da vida, somos atores de histórias escritas pelo destino.
Somos laranjas prisioneiras na rugosidade da casca; peças aleatórias encarceradas num jardim florido de almas que tresandam a girassóis.
Somos a inspiração, a expiração; o sangue seco no gume da navalha e o repasto desusado de deuses alienados. Somos o negro, o branco, o opaco e o translúcido.
A lucidez da excitação de uma ejaculação mental: somos o archote que incendeia as muralhas da imaginação; a carne vegetativa na ponta de um garfo. Somos a grandiosidade omnisciente do vazio e, acima de tudo, somos um compreensível nada na magnitude das galáxias.
Que mais seremos, senão nós, manipulados por outros; desprovidos do papel principal, dos princípios da moralidade, controlados por fios fundados na falsidade da fundamentação de deusas gregas, deusas romanas e deuses por nascer? Talvez dos novos deuses, ou quem sabe, dos deuses mortos a renascer?
E continuamos. A vida flui e influi, a brisa a saber perfumes extintos nas pétalas da árvore-da-vida. No caos do início dos tempos, a tocar-nos gelidamente a derme, trazendo canções de embalar; acordes musicais corrompidos na aurora de um novo dia transmutam-se para um furacão, um ciclone a estraçalhar as emoções humanas.
Até que, na janela da torre mais alta do castelo de cartas que ainda não tombou na tempestade do destino, ouve-se a corneta.
Escutamos a opinião dos gaviões, dos cervos da natureza e dos servos aprisionados em livros: assertivamente, atentamente, homicidamente.
Nas rochas dos penhascos subaquáticos, germinam raios e trovões; nas casas desocupadas, tomadas impulsivamente pelos donos do teatro, saem peões e rainhas. Uvas são esmagadas em cálices fumegantes, e a revolução inicia-se.
Os tambores ribombam para lá dos anais da história, em direção ao futuro. Os casacos ásperos são vestidos por generais balofos e bafientos. Os espíritos despidos escolhem as suas armas; a pena sempre foi mais forte que a espada. Nos campos florescem ossos, nas florestas surgem areias. Na casa dos reis, banham-se virgens em sangue de mil cães danados.
E no final, cai o pano. Cai a noite, cai a memória, caem as estrelas ascendentes.
Em rodapé, manchado a seiva, lê-se “dedicado a todos os resistentes, a todos os atores que tombaram na execução desta peça”.
As luzes desligam-se.
No teatro da vida, somos lobos famintos a deambular num abrasador deserto canónico. Desprovidos de emoções, destituídos de alma, a marchar contra um império que ainda nem desabrochou.
Pintura de Yves Tanguy - Indefinite Divisibility (1942)