A que cheiram flores mortas?
Novembro 28, 2021
Carlos Palmito
21 Horas, Daniela acordou subitamente do sono pesado em que se encontrava, algo a fez acordar, levantou-se meio cambaleante devido ao despertar inesperado, e foi até à janela do quarto, nada conseguiu ver. Lembrou-se repentinamente, a janela da sala, a única que dava para a torre, saiu do quarto, desta feita já em passo firme, o sono tinha terminado, sentiu o coração a palpitar rapidamente, descompassadamente, colocou-se de pé no sofá que dá para a torre, olhou e viu, não pela primeira vez, mas sempre a fascinou, todos os seres estavam nas suas portas, todos excepto um, faltava o único que ela conseguia reconhecer fácil, a visão era imaculada, mágica, como a torre mais alta de um conto de fadas, os seres (as gárgulas), o céu estrelado, hoje viam-se perfeitamente as estrelas no firmamento, era noite de lua nova, o que dava ao momento uma magia ainda maior. O último dos seres finalmente chegou, sentou-se na sua porta habitual, e como habitualmente com as pernas ao longo da parede, apoiou os cotovelos nos joelhos e a cabeça sobre as mãos, desta vez não fixou o olhar sobre a população, nenhum deles o fez… ao invés, olharam todos em conjunto para os céus, como se fossem um apenas, e começaram de muito baixinho uma entoação de sons, num timbre agudo, que foi amplificando o seu volume ao longo dos minutos, o céu, até ao momento estrelado, começou a encher-se de densas nuvens, e suavemente principiou a gotejar, aumentando a sua intensidade em harmonia com o som proveniente da garganta dos seres, as ruas até ao momento secas, começaram a encher-se, no inicio, de pequenas poças de água, que com a intensidade da chuva se foram transformaram em pequenos rios que serpenteavam pelas pedras da calçada, que foram aumentando a sua dimensão, o seu caudal, as margens curtas que existiam foram-se afastando cada vez mais uma da outra, até que começaram a atingir os passeios, criando pequenos redemoinhos em volta das sarjetas, que tentavam a todo o custo dar vazão aquela enchente… Tudo isto decorria, enquanto no topo da torre os seres continuavam o seu grito, cântico ou fosse lá o que fosse!
Subitamente chegou a Daniela um cheiro que ela descrevia como “Primavera”, pensou que fosse imaginação, olhou para as ruas atenta, em busca da sua Primavera, mas ela não se encontrava lá, olhou para a torre, também não era lá que se encontrava, contudo, o seu olfacto captava o odor cada vez com mais intensidade, “… de facto a Primavera está perto, muito perto” e voltou a desviar o olhar para os rios da sua cidade, viu-se obrigada a pestanejar, não podia ser, a visão tinha que a estar a enganar. Mas era real, bem real, os rios estavam a arrastar no seu caudal milhares de pétalas das mais diversas flores, ali estava o esplendor da sua primavera, Daniela abriu a boca fascinada perante tanta beleza, “…Porque voam os anjos e nós temos que caminhar?” as pétalas continuaram o seu percurso arrastadas pelo caudal, entupindo sarjetas e inundando as ruas, a seu lado começaram a navegar também flores, botões das mesmas “ afinal os jardins também podem andar”, as margens, que até ao momento apenas tocavam os passeios, afastaram-se mais ainda, começando a então a tocar nas casas, estabelecendo os seus limites nelas, oferecendo-lhes flores “ A que cheiram flores mortas?”
21h28m, o timbre dos seres começou a baixar, e com ele a intensidade da chuva, até que ambas cessaram por completo, o único vestígio que existia era o rio e as flores e… um barco de papel, Daniela não conseguia tirar os olhos dele, era o seu barco dos piratas que navegava pelo rio das flores mortas “… cheiram a chuva!”
Um sono repentino atingiu-a, deitou-se no sofá e adormeceu de imediato.
FOLHA EM BRANCO
FOLHA EM NEGRO
“Ao próximo sinal sonoro serão precisamente 13 horas…”
“A noite de ontem foi de tempestade, várias aldeias do interior encontram-se ainda neste momento isolada…”
“Finalmente foi assinado o acordo transatlântico entre…”
Foto de Andre Moura no Pexels