A Noite do Silêncio Profundo
Outubro 25, 2023
Carlos Palmito
No coração da noite, onde as sombras dançam com o medo,
onde os morcegos se escondem dos selváticos anjos noturnos,
onde as crianças conspiram em invocações luciferinas, por turnos,
a lua esconde-se numa névoa densa que resplandece um aroma azedo.
Uma figura ensanguentada percorre a vereda, envolta em farrapos.
Na mão esquerda leva um crucifixo, na direita uma boneca de trapos.
Sente-se o aroma de desespero embrulhado em safiras perdidas.
Ao longe, as corujas piam silenciosamente odes às imaculadas suicidas.
A sua respiração rápida, desarvorada, condiz com os batimentos cardíacos.
As hienas choram, escondidas debaixo de uma cama de pesadelos despedaçados,
enquanto que o gume aguçado do pardal-telhado esculpe monstros arrojados.
Tudo se funde na noite do silêncio profundo, desde fadas, a cavalos demoníacos.
Na sua frente existe um horripilante penhasco rodeado por alfazemas canibais,
O caminho encontra-se coberto pelo esverdeado sangue borbulhante de pirilampos,
ainda a fumegar, a feder a morte, pregados aos musgos com heras, com grampos.
Atrás dela, nos velozes passos de mil gazelas, vem a sombra denunciada pelos animais.
Sente a transpiração morder-lhe os seios, sente o pânico inundar-lhe as orações.
Perde a cruz, tal como perdeu a fé na humanidade, fica ali, esquecida, no chão…
“Em nome do pai, do filho e do espirito santo. Eu sou o sangue e a carne, o vinho e o pão”.
Assim entoava o sacerdote, antes de cortar os pulsos e se esvair nas suas perdições.
As árvores segredam lascivamente histórias de encantar com as planícies escarlates,
palavras sem significados nem significâncias, a luxúria esventrada em todas as beiras.
Ontem a batalha foi tua, desnuda rainha da beleza, hoje, apenas pertence às caveiras.
Perto de si, sente a mão sair das sombras, cheira a limão, a ódio, a amor, a contrastes.
A boneca de trapos cai na lama, solta um dos olhos feito com botões,
A mulher que sangrava pecados, prepara-se para o impacto final,
Um grito prende-se-lhe na laringe, a sombra goteja resquícios de um animal,
gotículas de gorduras e vísceras aprisionadas em claustrofóbicos borrões.
Na noite do silêncio profundo, a boneca de trapos ruge em pânico,
com o olho sobrevivente a pender nos fios que o amarram, numa visão bizarra,
lembrando os nervos óticos. E tudo o que testemunha é uma mão com uma cimitarra,
a sair das sombras, para decapitar a sua dona... a oferenda de um ritual satânico.
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