Num estalar de dedos
Setembro 26, 2023
Carlos Palmito
No abismo dos sonhos, o passado e o futuro encontraram-se.
A chuva caía na floresta, as fadas brincavam no lodaçal, e os faunos fumavam cachimbos da paz com ogres tresloucados.
Um trovão ribombou no infinito, um raio despencou-se sobre uma árvore, fulminando um corvo que debicava as vísceras de dois coelhos mortos.
A chaminé da única cabana existente nas proximidades expelia um fumo denso, com os aromas de carne assada e madeira queimada. As janelas encontravam-se todas embaciadas, à exceção de uma, onde se encontrava o desenho esborratado da palma de uma mão ensanguentada.
Sentado numa cadeira, com os cotovelos apoiados na mesa de carvalho, Amans observava o homem na sua frente. Devia ter uns trinta anos, máximo, barba farta, nariz quebrado a verter sangue escuro que lhe manchava o peito desnudo. Perto da janela, estava a massa disforme de um outro ser, que em tempos tinha sido um humano, se é que se podem apelidar chacais de homens. Agora, era apenas ossos partidos, uma mão esquartejada, e o olhar vítreo, a contemplar a fuga que não conseguiu alcançar.
— Sam, Sam — murmura Amans, enquanto coloca a mão esquerda em concha, com a palma para cima, sobre a mesa, de onde começa a materializar-se uma imagem numa luz ténue. Nela existe um espelho, e Leda contempla o seu corpo desnudo, refletido por aquele pedaço de vidro. Consegue-se perceber, como fundo, uma cama. Deitado nela estava o mago-guerreiro, a contemplar-lhe a derme sedosa. — Sabes quem ela era?
Os olhos do brutamontes esbugalham-se de terror, sabia na perfeição quem era a pessoa na imagem que o mago lhe mostrava. Abanou a cabeça em negação.
Lá fora, um novo trovão ecoou por todo o vale, pela floresta. Junto à entrada, um alazão branco relinchou. Os seus olhos eram um misto de negro e vermelho.
Amans coloca a mão direita sobre o cabo de marfim de uma adaga, que repousava sobre a mesa, ao lado de uma rosa vermelha.
— Nunca a viste, não é? — estala os dedos da mão esquerda, e, a imagem, dissipa-se numa constelação cintilante. — Tens apenas uma chance, meu amigo — a voz do guerreiro transmitia amargura, deceção, uma dor animalesca presa entre o passado e o futuro., contida apenas por um fio de cabelo, um fio de pelo eriçado de um lobo das estepes.
Várias ninfas de dentes aguçados juntaram-se às criaturas que brincavam no lamaçal criado pelo dilúvio. Talvez Deus exista nesta parte do mundo. A primeira, de cabelos esverdeados, salta sobre o ser mais próximo, dilacerando-lhe a asa esquerda, membranosa, como se fosse um lençol de linho apodrecido.
No interior, o mago volta a estalar os dedos da mão esquerda. A direita permanece imóvel sobre o punhal. Os olhos, cinza, fitam a expressão do homem do nariz partido. Este, se conseguisse, teria fugido. Contudo tinha as mãos costuradas à mesa, com pregos enferrujados. Não fosse o temporal, e ouvia-se o sangue a gotejar no chão empoeirado.
— Olha-me nos olhos, amigo — insistiu o mago. O ser na sua frente, agonizava, mas obedeceu. O medo estava presente em cada pestanejar, em cada inspirar, em cada engolir de saliva misturada com o visco vermelho a saber a ferro que lhe inundava as papilas gustativas.
Numa bancada afastada, um lampião a óleo iluminava a cena, fazendo dançar uma luz amarelada sobre toda a cabana. Uma testemunha ocular.
Na palma do guerreiro, Amans, voltou a formar-se uma imagem cromática, nos mais diversos espectros coloríficos. Agora visualizava-se uma porta maciça de um castelo a ser arrancada das dobradiças. A imagem volta-se de novo para o espelho, onde mostra medo e pânico nas pupilas de Leda.
— Ela — Amans tanta acariciar a face projetada na luz. —, era o meu passado, o meu futuro — ergue a mão direita com a faca, cujo gume coloca em cima do polegar do ser apavorado, e pressiona, devagar, até sentir o osso do dedo do homem. — Tu, foste a anomalia no sistema, a interceção na reta do destino, e o corte abrupto. Mataste o meu passado e futuro — Ergue a lâmina, e baixa-a de uma só vez, num movimento rápido, bruto, quase grotesco, que decepa o dedo do outro ser. Ele grita em agonia, espantando nessa dor um rato que passeava na cozinha. — Continuas a não saber quem ela é?
Terão acaso as fadas garras?
Na luz, Leda volta o olhar de novo para a porta, que está estatelada no chão. Dez soldados entram no quarto do castelo onde ela se encontrava. O terceiro, tinha o rosto do homem morto junto à janela. O quarto, possuía a face do ser sem dedo.
— Sabes — os dedos voltaram a estalar, a imagem a dissolver-se em pleno ar. — Estas imagens que estou a mostra-te, elas não mentem, é… uma espécie de magia, consigo reviver isto todos os dias, foi ela que me deu, no último suspiro — Amans levanta-se da cadeira, e contorna a mesa até ao antigo soldado. Passa-lhe os dedos pelo cabelo seboso, que agarra num ímpeto, e empurra-lhe a cabeça em direção à mesa. Ouve-se um baque. Os ossos do nariz do outro, que até então estavam apenas partidos, estraçalharam-se num baque seco.
Um ogre deu um bafo enérgico no cachimbo, retirou-o da boca, libertou uma baforada que desenhou o rosto da cortesã. Olhou para a extremidade pontiaguda do cachimbo, e para o olho púrpura do fauno.
— E tu, afirmas que não sabes quem ela é? — o mago solta uma risada insana. — Queres ver o resto? Ver o que aconteceu a seguir? — Sam abana a cabeça desesperadamente em sinal negativo, ele sabia o que de lá vinha. Mas não foi o suficiente. Os dedos estalam uma vez mais. Na luz, surgem os soldados a manietarem a pobre mulher, a despirem-se.
E a luz dissipa-se num novo estalar, deixando consigo odores de transpiração e lágrimas, e os vislumbres duns porcos de duas pernas. Soldados cobardes, na cobardia da queda da cidade de cristal.
— Foi assim, num estalar de dedos, roubaste-me o passado — o mago solta a cabeça do soldado, dirige-se em passos lentos, como os de um predador a emboscar a sua presa, em direção à bancada. Agarra no lampião e traz o mesmo até junto de Sam. O sangue, que agora espirra em espasmos do nariz trucidado de Sam, brilha por toda a cozinha.
— Vou deixar-te uma escolha — um sorriso mórbido desponta nos lábios de Amans. — E acredita, é mais que lhe deram a ela — Trespassa a mesa, de baixo para cima, no exato local onde o rosto do antigo soldado embateu, com a adaga, deixando a ponta afiada da mesma a cintilar perigosamente. — Vais morrer hoje. Acredito que já o saibas. Dou-te a eleição do como.
Dirige-se para a porta, com o candelabro aceso na mão direita. Na ombreira da porta, olha para trás. Para Sam cravado à mesa, e para os restos disformes do porco número três.
— Escolhe entre morreres na lâmina. E acredita, que essa seleção tem que ser tomada com coragem, pois só funciona se lhe acertares em cheio com o olho — um clarão vindo da tempestade iluminou a noite. Junto da porta surgiu a cabeça do alazão branco. — Ou então, optas por morrer queimado — nisto, atira o lampião para o meio da divisão, que começa a arder, alimentado pelo óleo que se espalhou.
O ogre, apunhalou o fauno com o cachimbo. A paz foi interrompida. No lodaçal, fadas e ninfas gemiam numa orgia canibalesca.
Foi tudo num estalar de dedos. O passado e o futuro a colidirem no bosque das aberrações.
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