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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

Expurgação

Setembro 14, 2023

Carlos Palmito

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A chuva caiu como lágrimas do céu, lavando a alma da terra.

Trazendo odores de solos ancestrais, perfumes nauseabundos a enxofre, metamorfoses e vagabundos, a borboletas que se dissolvem na maresia do esquecimento, no qual mergulhamos, no qual nos dissipamos numa matéria viscosa, num ácido que nos corrói do interior, vermelho, negro, abismo, solidão. Somos fuligem e vermes, parasitas a consumir a terra do nunca. Peter Pan foi assassinado.

A chuva caiu, como lágrimas do céu, trazendo recordações ocultas nos olhares; nas persianas fechadas das casas que se diziam abertas; nos corações dos seres que respiravam, nas pedras, nos desertos, nas savanas, semanas após semanas, chacina após chacina… ao pó quem nunca foi pó. Ao pó quem é um dilúvio, ao pó a água que escorre dos novelos celestiais.

A chuva caiu como lágrimas do céu, limpando as penas enferrujadas dos anjos que se afogaram nos ensanguentados mares pecaminosos, ruinosos, gélidos como os ventos do Sul que nos entorpecem a alma, a derme, o olhar vidrado na fome por mais, mais, MAIS…

Lavou as janelas da discórdia, assou a bonança e a temperança, temperamentalmente temperadas com as lágrimas de um Deus que se diz justo, como se fossem lâminas a forjar numa estrela em extinção.

Tocou o acordeão do destino onde não existiam notas nem de dó, nem de sol, nem sol existia no mundo, nem dó de um Deus que se dizia perfeito, nem imperfeição na alma da meretriz que cheirava a jasmim e desilusão.

A chuva caiu como lágrimas do céu, a saber a tristeza e melancolia, a saber ao entardecer, e aos trovões que ribombam no infinito. A saber a algodão-doce mergulhado num xarope envenenado. A saber a morte, e a saber da morte de algo que um dia foi conhecido por casa.

Gaia, a ti brindo, neste cálice sangrento, recheado de lágrimas azedas!

 

IMAGEM encontrada na net

Meu querido mês de agosto

Agosto 28, 2023

Carlos Palmito

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Meu querido mês de agosto: um ladrão, algures no tempo, roubou-te a capital, tal como tu roubaste as flores à primavera.

Um vândalo ateou-te fogo num gesto insultuoso à máscara dos Deuses. E tu permitiste! A balança do temporal dos justos foi-se; sobraram apenas cinzas, meu amado.

Ela, a ribeira, vai cheia, inundada de pedras e sede. Os pinhais ardem, meu querido, incendiados na indecência dos teus calores, que amo, meu agosto.

E tu consentes, partilhas canções e sonetos com as cigarras que se calaram; histórias com estrelas sem brilho… enquanto te extingues.

 

👉 um desafio do clube de leitura de Analita Santos

 

Imagem por Johan Christian Clausen Dahl - Forest Fire

Inocência...

Abril 11, 2022

Carlos Palmito

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— Lança, vá, atira essa merda.

Gustavo olhava pasmo, na sua vida nunca tinha visto Catarina a usar palavrões.

Ela ria, e contemplava a ria que iria desaguar algures, nem tinha a certeza de ser uma ria, isto é… tinha água, tinha erva nas imediações, poderia ser apenas uma ribeira, um riacho, a saliva de Gaia, mas enfim, hoje ela ria na ria.

— Vá Gustavo, mexe esse cu gordo e atira o calhau, quero ver se consegues tantos ressaltos como eu.

O rapaz, catraio ainda, mirou a água e a pedra que tinha nas mãos, atirou-a ao ar para lhe tomar o peso, e arremessou-a para trás.

— Esta não, é muito pesada, espera.

Vasculhou as margens em busca de um seixo mais leve, liso, algo que flutuasse como uma pena ao vento, ela era a sua namorada desde a primeira classe, e agora, nos seus oito anos mal feitos não queria ficar envergonhado perante a menina de trancinhas negras.

Finalmente encontrou-a, era perfeita, tinha o tamanho exato do seu carro de policia que estava junto aos soldados da paz, como os adorava este rapaz.

Observou Catarina, que estava ao sol a bronzear mais ainda a sua cara sarapintada de sardas.

— Esta é perfeita Catarina, queres ver? Vou fazer um milhão de ressaltos, vai daqui até à lua.

Ela pulou de alegria, tinha fé no seu amigo, o eterno parceiro de brincadeiras, aquele que lhe mostrou que a vida é uma festa, nem que seja uma que apenas as crianças vejam.

— Atira, Gustavo, atira isso agora, eu conto.

Ele puxou o braço atrás, o mesmo braço com que a empurrava no baloiço que está no jardim das fontes, fechou os olhos e lançou a pedra.

A menina começou a sua contagem.

— Um, dois, três, quatro, olha, um passarinho azul. Sete, oito, nove, — Rodolfo, o cão que levaram com eles latiu, lá atrás, ela desviou o olhar, contando mentalmente o que não via. — dez, onze. Rodolfo, vai apanhar a bola. — O cão partiu, e a pedra já não se via mais. — oh, já não vejo os salpicos.

Gustavo encolheu os ombros, piscou o olho, enquanto desviava o cabelo de palha da testa.

— Esta, Catarina, à velocidade que ia, já está de certeza com os golfinhos, no mar.

 

Foto de Marta Wave no Pexels

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