Dois raios e um funeral
Fevereiro 26, 2025
Carlos Palmito
O dia era soalheiro, com algumas nuvens, poucas, a manchar o céu.
Na entrada lateral da igreja, estava uma carrinha da funerária com várias latas atadas a um cordel na sua traseira e um cartaz escrito numa caligrafia infantil, em pinceladas toscas, com as palavras “Recém cadáver” colado ao vidro.
Os bancos de madeira preenchiam todo o jardim, onde várias pessoas cavaqueavam animadamente e bebericavam vinho e cerveja.
Mais ao fundo, vários grelhadores a carvão eram vigiados por alguns homens, responsáveis pelos churrascos.
As crianças corriam em todas as direções, a jogar à apanhada ou às escondidas, e algumas até mesmo a coisas mais antiquadas, como o jogo do pião.
Junto à porta da igreja, Gui e Rick, dois amigos de infância, fumavam um cigarro, enquanto esperavam pelo padre.
— E como foi que aconteceu? — perguntou Rick.
Gui franziu a testa, tentando reviver o momento exato. Repentinamente, os seus olhos azul-mar brilharam, e ele soltou uma gargalhada que ecoou por toda a igreja.
— Foi atingido por um raio.
— Um raio?
— Sim. Espera… não! Teimoso como era, foram precisos dois. Raios partam o homem pá! — e continuava a rir, até lhe descerem lágrimas pelo rosto e ficar quase sem ar. — A sério! Ainda dizem que um raio nunca cai duas vezes no mesmo sítio.
— Mas o que estava ele a fazer agarrado ao para-raios?
— Ora, com a tosga que tinha, só podia estar a tentar recarregar as baterias.
Os dois tentaram conter-se, mas em vão. Em segundos, soltaram uma gargalhada estridente, abafando o som da música, que nesse momento era algo da banda sonora da “Vida de Brian”.
— Não funcionou. Descarregou-se por completo.
— Não acho que fosse isso. Pelo que percebi, estava a tentar arranjar lume para acender o cigarro — interrompeu Filipa, a irmã mais nova de Gui. — Ou não te lembras que o pai estava sempre a perder os isqueiros?
Os rapazes olharam para ela com os olhos mareados pelas lágrimas de tanto rir. Suspenderam um pouco as gargalhadas para recuperar fôlego, coisa pouca, porque um momento depois já estavam a rir que nem perdidos.
— O senhor Manel foi abençoado, isso é uma certeza — Rick deu um abraço vigoroso ao filho do morto, e levantou Filipa do chão numa pirueta. — O melhor evento a que fui convidado desde o segundo casamento da minha mãe.
— Obrigado, Rick — conseguiu Gui dizer num balbucio entrecortado por gargalhadas. — Vá, vai lá, aproveita a festa. Tens ali bastante vinho, bebida branca e até um pouco de erva, que sei que gostas dela.
— Onde? — inquiriu o amigo, vasculhando os arredores com o seu olhar perspicaz.
— No caixão, claro... Onde mais seria? Porra, até parece que nunca estiveste num funeral.
Rick afastou-se, dirigindo-se ao caixão. No seu interior, alinhados com uma minúcia absurda, como se estivessem nas prateleiras de uma taberna, estavam copos de barro e garrafões de vinho. Pegou num dos copos, observando atentamente a prima do Manel, que se mexia ao som da música, com o vestido justo a moldar-lhe cada curva. Rick sorriu e encheu o copo.
Nesse momento, parou um carro na entrada, de onde desceu o padre envergando uns calções de praia e uma camisa havaiana.
Dirigiu-se para a igreja em passadas largas, com um sorriso que lhe inundava as faces rosadas.
Filipa desviou-se para o lado, para o deixar passar. Gui, por sua vez, piscou o olho à irmã.
— O seu bilhete, meu caro? — perguntou num tom de voz o mais formal que conseguiu.
O pároco Pires olhou para o rapaz meio confuso com a pergunta.
— Qual bilhete?
— O que lhe dá direito a dois gins e um porto — aí, Filipa não aguentou, e desatou a rir a bandeiras pregadas, seguida pelo seu irmão e pelo padre.
— Vê-se mesmo de quem são filhos — conseguiu ele articular.
— Quem sai aos seus não degenera, não é, senhor prior? — satirizou ela.
Ainda a rir, o padre dirigiu-se ao caixão. Tirou uma mortalha das presilhas laterais, e uma mistura de tabaco com erva da caixinha ao lado.
Encheu um copo com vinho, e encostou-se ao pilar, observando a festa, enquanto terminava de enrolar a ganza.
Rick olhou-o de alto a baixo.
— Não vai pregar o sermão, senhor Pires?
— Achas que deva?
— Claro que sim, afinal isto é um funeral, não? — indagou com um sorriso mordaz.
O padre ergueu o cálice e clareou a garganta.
— Meus amigos — ao fundo, o DJ convidado baixou o volume da música, que nesse momento era “Paint It Black”, para que todos pudessem ouvir o padre. — Estamos aqui hoje, todos reunidos num momento de celebração. Manel, eletricista em horas vagas, festivo a tempo inteiro, foi desta para melhor.
Todos os olhares estavam fixos no padre, que continuava a discursar.
— Aqui nesta pequena aldeia, todos o conheciam. Afável, simpático, cheio de vida, sempre elétrico — aproveitou a pausa para dar um gole no vinho. — Relembro alguns momentos dele, como aquele em que o apanhei a surripiar hóstias, que eram para acompanhar com o toucinho na tasca do Chico, ou aquele em que tentou casar com uma boneca insuflável. Na realidade — apontou para uma senhora de vestido vermelho com bolas negras, e um laçarote à hipster a enfeitar-lhe os cabelos ruivos — ia casar com a Madalena, não era?
Madalena fez uma leve vénia com o vestido, e lançou uma gargalhada, lembrando o momento. Ela escondida atrás do altar, e o Manel a casar com uma boneca comprada numa sex-shop. O padrinho era o Chico, que ia vestido apenas com uma gravata.
— Portanto, resta-nos apenas celebrar, já que é este o nosso momento. Aproveito para lembrar todos os presentes que, quem derramar uma lágrima de tristeza que seja, vai pagar o catering… e cantar a noite inteira no karaoke que estão a montar lá fora — ergueu o cálice, que verteu algumas gotas tintas pelo seu braço abaixo. — A ti Manel.
No altar, foram disparados dois canhões cheios de confettis e serpentinas. Das colunas de som começou a ser elevado gradualmente o som da música. “Thunderstruck”.
A cortina subiu revelando o defunto Manel, sentado, com um copo de tinto numa mão, um pedaço de pão na outra, óculos de sol colocados e, ao canto da boca, um cigarro. Ninguém sabia como é que os tipos da funerária conseguiram fixar aquele cigarro. Talvez cola. O certo, é que ele estava lá.