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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

Na água do rio

Outubro 18, 2023

Carlos Palmito

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Na água do rio crepuscular existe uma vírgula exclamada,

Uma palavra perfumada com cimento, perdida, exalada.

Existe a gaivota que foi aprisionada, interrogada e torturada,

e uma criança, meiga, doce como sal, inocentemente enterrada.

 

Na água do rio, afogam-se peixes-prateados, morre um oceano,

flameja um gélido sol negro, tão escuro quanto o amor draconiano.

Existem areais, estrelas, galáxias distantes, luares, um cavalo troiano.

Nela, vive um vulcão enraivecido, com um olhar penetrantemente insano.

 

Na água do rio,

todo o mundo perde o pio,

toda a alga tem frio,

todo o calor sente arrepio,

 

na água daquele rio.

 

Imagem encontrada no Freepik

A última dança do palhaço

Outubro 18, 2023

Carlos Palmito

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Justiça, justiça, justiça, justiça, justiça… 

Pelas persianas entram as cores azuis.  

Sorris, emerges das sombras por onde fluis.

Os holofotes são uma passerelle movediça.  

 

Entrelaças os dedos nos dela, a rainha da eternidade,

observas os teus dentes no espelho da sala empoeirada,

tudo se mantém, os gritos da autoridade, os buracos na estrada,

a respiração, a respiração, a respiração justificada pela idade.

 

Vejo-me na primeira pessoa, já não sou ele, sou eu, eu…

Ela está ali, nos meus braços, a pintar o chão de vermelho,

Eu, sou eu, eu, já não mandas, triste e obsoleto evangelho.

Serei um rei nas amarguras da vaidade, um rei, um ateu.

 

O vestido imaculado da noiva tresanda a sangue,

Está sarapintado de rubro, escarlate, morte, desejo

E é como todas as outras vidas, alguém que cortejo.

Não interessam as opiniões, não quero que ele se zangue.

 

A voz ecoa na cabeça, num trovejar hipnótico, oiço-a nitidamente,

Acima das ordens da polícia, dos filmes mudos no cinema, das sirenes,

do batimento descompassado da pulsação irrequieta dos meus genes.

— Mata, mata, mata, mata, mata, esventra — sussurram. — Sente.

 

Ela era o meu coração, era o doce nas mãos arrogantes de um recém-nascido.

É um nado-morto, nada, perdição, nada peixe, é morte, e amo-a, e odeio.

— Que colhes tu, filho? — perguntou-me o pastor — Colho o que semeio.

— Saia com as mãos no ar — insistentes, estas criaturas. Enfio um picador no ouvido.

 

Mas o anjo não se cala, esbanjo o delicado beijo na tez da senhora,

Levo-a até perto da porta, com os pés enfiados nuns sapatos de bailarina,

A lividez do rosto num sorriso rasgado, lambido, nas cores da adrenalina.

Aceno para o interior, com a mão livre sobre a maçaneta, para a cantora.

 

Sorrio, para não gemer. Foram eles, foi ele, eu sou apenas o instrumento.

Sigo as ordens do criador. Quantas já foram? Justiça, justiça, quero justiça.

Com os pés, desligo a luz, na mesa brilha a aguçada faca, o algodão e a pinça.

Na memória vejo campas, jazigos, flores… vejo os aromas trazidos pelo vento.

 

Posso sair agora, uma última dança, eu e a noiva cadáver. Ela ama-me.

Eu amava-as a todas, desde a velha obtusa, à magricela roliça.

A todas, a todas as criaturas, mesmo as que berravam: — Justiça!

Mas deus, e o anjo que me sussurra: — Mata, mata — chama-me!

 

Abro a porta, com a calma enfurecida de um rato, um arauto em águas rodopiantes.  

Poderá um assassino em série ter justiça? Efetuar um bailado entre balas e vítimas?

— Liberte a refém — como odeio ordens. Incluindo aquelas dos anjos, doces, intimas.

Dou uma viravolta de dança com ela nos braços, um giro de tango, tudo como antes.

 

Oiço o cão a embater na cápsula da bala, vejo o brilho laranja acinzentado,

Em câmara lenta, sou a bala, sou a justiça, sou o projétil, justiça por mil.

Sinto-a trespassar-me o crânio, milímetro por milímetro. Sinto-a levar a voz febril.

Calam-se os arcanjos: — Mata — cala-se a justiça. — Mata — para sempre acorrentado.

  

No último segundo, no penúltimo milímetro, vejo tudo na perfeição, vejo o meu destino,

Vou para o céu, fui um servo fiel. Vou lamber a mão ensanguentada dele, o deus,

Para o esquartejar, arrancar-lhe o rosto e pendurar nos corredores enlouquecedores do adeus.

Para manchar o trono da criação de urina, fezes e excrementos, trucidar a palavra e o hino.

 

Estraçalhar as asas de todos aqueles anjos que me cantavam em vozes melódicas:

— Mata, mata, mata — e espalhá-las pelos quatro cantos do universo, do infinito…

Serão cantadas serenatas a mim, o fantoche que usurpou o reino de deus. Tudo é finito…

Até mesmo ele, eles, elas, as palavras que me suspiravam impulsos e ações metódicas.

 

Justiça, justiça, justiça, justiça,

Berra o cão, mia a ave, cala a missa,

Fecham os olhos os missionários,

Choram os vingadores e vigários.

 

Justiça, justiça, justiça.

A última bala foi reservada, nela lia-se

 

Demónio

 

Imagem tirada do freepik 

Na mata do puma

Outubro 16, 2023

Carlos Palmito

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— Inspira, expira… — gritava-me a mente já esgotada.

Atrás, na mata, ouvia os passos do felino. Um olho azul, o outro branco, leitoso, como a seiva do carvalho adoentado, aquele que tombou há dois dias no lodo azulado de excrementos e dejetos humanos.

A inspiração veio em golfadas rápidas, arquejantes, lembrando as engrenagens de um comboio, ao mesmo tempo que me concedia os sabores de algodão-doce misturados com o perfume aromático de um guisado de raízes, túlipas debotadas, sangue férreo e… pânico.

— A que cheira o pânico? — Indagou o sonho, ou a distorção mental.

Cheira… cheira… cheira a caramelo torrado com um leve sabor de fome.

Corri, corri na velocidade da expiração, sentindo o sol a queimar a derme, que transpirava numa catarata de tinturas tão negras quanto as asas de um mosquito.

Quem me dera que o sol morresse, num segundo apenas. Poderia renascer depois, mas, para já, desejava-lhe, egoisticamente, a morte numa agonia diluvial.

Perdi-me nos pensamentos que vinham em catadupa. Esbarrei contra a árvore. Vou fingir que a vi. Mas vi, tenho quase a certeza.

Será que vi?

Vi! Vi mesmo.

— Mentiroso — a mente não se cala, sempre ali, a morder-me o paladar transpirado.

Ela era rugosa, o que vi era rugoso, castanho, verde, negro…

Negro?

O puma!

Os meus olhos piscaram. Puma?

Olhei para trás. Vi-lhe o sabor ao longe, a correr em direção ao chupa do bebé na maternidade florestal.

O meu braço sangrava um pus aguarelado. 

Deus, pus?! Já?! Ainda agora o feri.

Corri mais cem metros, que se transformaram em mil, em milhões, em batimentos cardíacos irregulares, que o meu ouvido captava.

Interessante, não ouvi o esquilo a grasnar, porém, ouvi cada compasso do coração… do meu a galope, e do do puma a trote, numa calmaria tempestuosa.

Perto, o rio translúcido clamava…

— Inspira…

… por mim.

Mergulhei nas águas geladas, com um sabor acre a pastel-de-nata num natal amargurado.

O Puma…

— Expira…

… desistiu da caça, ficou na borda do rio, esperançoso que eu me afogasse.

Não afogo.

— Mas afogas, já afogaste — vozes, a gritarem, a arranharem o interior do crânio, lembrando um cadáver num caixão enterrado na praia. Necessito de sossego.

Nas forças que me restavam, entre o martelar desenfreado no peito e a dor desarticulada nas pústulas, nadei em direção à outra margem. A corrente tentava levar-me com ela, rio acima, em direção à nascente, à criação.

Não quero ir.

Sentei-me no areal de musgo e rochas. O som era hipnotizante, gotas de água a choverem diretamente do rio para o firmamento, onde desenhavam constelações invisíveis.

Do outro lado deste universo minúsculo, o gato negro, puma, ou lá o que aquela coisa fosse, continuava fixo em mim, tão fixo como a teia a observar a mosca.

Ignorei-o.

Criei uma rede de lianas com os restos contaminados de uma árvore, cujo maior sonho era ter sido uma astronauta treinada para voar até ao núcleo do planeta. Com os ramos, acendi uma fogueira.

Já não voas.

 e foquei a atenção numa criatura.

Era bela, estava nas rochas, deitada, a exalar um bálsamo tão inebriante, que me entediava.

Pesquei-a. Revelou-se sendo uma Tágide.

— Uma Tágide? No Douro?

E porque não? Se digo que a pesquei, é porque pesquei.

Ela gemeu-me uma melodia sedosa, apelando aos poetas e aos pumas riscados, enquanto a assava num fogo lento.

Tinha fome.

 

Imagem gerada com recurso a ai no website https://www.craiyon.com/# 

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