Justiça, justiça, justiça, justiça, justiça…
Pelas persianas entram as cores azuis.
Sorris, emerges das sombras por onde fluis.
Os holofotes são uma passerelle movediça.
Entrelaças os dedos nos dela, a rainha da eternidade,
observas os teus dentes no espelho da sala empoeirada,
tudo se mantém, os gritos da autoridade, os buracos na estrada,
a respiração, a respiração, a respiração justificada pela idade.
Vejo-me na primeira pessoa, já não sou ele, sou eu, eu…
Ela está ali, nos meus braços, a pintar o chão de vermelho,
Eu, sou eu, eu, já não mandas, triste e obsoleto evangelho.
Serei um rei nas amarguras da vaidade, um rei, um ateu.
O vestido imaculado da noiva tresanda a sangue,
Está sarapintado de rubro, escarlate, morte, desejo
E é como todas as outras vidas, alguém que cortejo.
Não interessam as opiniões, não quero que ele se zangue.
A voz ecoa na cabeça, num trovejar hipnótico, oiço-a nitidamente,
Acima das ordens da polícia, dos filmes mudos no cinema, das sirenes,
do batimento descompassado da pulsação irrequieta dos meus genes.
— Mata, mata, mata, mata, mata, esventra — sussurram. — Sente.
Ela era o meu coração, era o doce nas mãos arrogantes de um recém-nascido.
É um nado-morto, nada, perdição, nada peixe, é morte, e amo-a, e odeio.
— Que colhes tu, filho? — perguntou-me o pastor — Colho o que semeio.
— Saia com as mãos no ar — insistentes, estas criaturas. Enfio um picador no ouvido.
Mas o anjo não se cala, esbanjo o delicado beijo na tez da senhora,
Levo-a até perto da porta, com os pés enfiados nuns sapatos de bailarina,
A lividez do rosto num sorriso rasgado, lambido, nas cores da adrenalina.
Aceno para o interior, com a mão livre sobre a maçaneta, para a cantora.
Sorrio, para não gemer. Foram eles, foi ele, eu sou apenas o instrumento.
Sigo as ordens do criador. Quantas já foram? Justiça, justiça, quero justiça.
Com os pés, desligo a luz, na mesa brilha a aguçada faca, o algodão e a pinça.
Na memória vejo campas, jazigos, flores… vejo os aromas trazidos pelo vento.
Posso sair agora, uma última dança, eu e a noiva cadáver. Ela ama-me.
Eu amava-as a todas, desde a velha obtusa, à magricela roliça.
A todas, a todas as criaturas, mesmo as que berravam: — Justiça!
Mas deus, e o anjo que me sussurra: — Mata, mata — chama-me!
Abro a porta, com a calma enfurecida de um rato, um arauto em águas rodopiantes.
Poderá um assassino em série ter justiça? Efetuar um bailado entre balas e vítimas?
— Liberte a refém — como odeio ordens. Incluindo aquelas dos anjos, doces, intimas.
Dou uma viravolta de dança com ela nos braços, um giro de tango, tudo como antes.
Oiço o cão a embater na cápsula da bala, vejo o brilho laranja acinzentado,
Em câmara lenta, sou a bala, sou a justiça, sou o projétil, justiça por mil.
Sinto-a trespassar-me o crânio, milímetro por milímetro. Sinto-a levar a voz febril.
Calam-se os arcanjos: — Mata — cala-se a justiça. — Mata — para sempre acorrentado.
No último segundo, no penúltimo milímetro, vejo tudo na perfeição, vejo o meu destino,
Vou para o céu, fui um servo fiel. Vou lamber a mão ensanguentada dele, o deus,
Para o esquartejar, arrancar-lhe o rosto e pendurar nos corredores enlouquecedores do adeus.
Para manchar o trono da criação de urina, fezes e excrementos, trucidar a palavra e o hino.
Estraçalhar as asas de todos aqueles anjos que me cantavam em vozes melódicas:
— Mata, mata, mata — e espalhá-las pelos quatro cantos do universo, do infinito…
Serão cantadas serenatas a mim, o fantoche que usurpou o reino de deus. Tudo é finito…
Até mesmo ele, eles, elas, as palavras que me suspiravam impulsos e ações metódicas.
Justiça, justiça, justiça, justiça,
Berra o cão, mia a ave, cala a missa,
Fecham os olhos os missionários,
Choram os vingadores e vigários.
Justiça, justiça, justiça.
A última bala foi reservada, nela lia-se
Demónio
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