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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

A Hora do Lobo e da Espada

Agosto 31, 2023

Carlos Palmito

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O eco distante das montanhas ressoa como lembranças de tempos distantes.
O sol desponta por detrás das cordilheiras, numa rígida manhã de nenúfares e centopeias; as cascas dos pinheiros congelaram no natal, contudo, hoje é verão.
Contemplas fascinado o universo a teus pés, na mente dança um verso que relembra que a vida difere simplesmente pelo prisma em que é presenciada.
Rugem ursos, arfam duendes, cai a neve, cai o ser na batalha contra os seus demónios; fechas os olhos e sentes o nauseabundo cheiro de couve cozida e ovos recheados com o sangramento das memórias.
Desejas fugir do planalto, ascender à luminária do farol extinto.
Observas os teus ancestrais numa batalha eterna, anjos contra demónios, magos-guerreiros contra os que incendiaram a cidade de cristal.
O lobo aproxima-se, pelo eriçado, mandíbulas a gotejar sangue, olhos carregados da fúria contida numa alcateia.
Pegas na espada.
— Hoje não, irmão. — gritas com ansiedade!


Pintura de John Martin - Solitude (1976)

Câmaras de Tortura Estética

Agosto 30, 2023

Carlos Palmito

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Alinhados lado a lado, estavam os observadores, os espetadores, os voyeurs, as dores, os apontadores e os marcadores, que a marcaram como gado a abater.

Na outra ponta, existiam aquecedores digitais, batons, bastões, secadores de cabelo, bases de mil cores… exceto as do arco-íris.

— Temos que subir as sobrancelhas, colocar sardas nesta cara lisa. Não chores menina, que debotas o eyeliner — grunhiam os porcos enquanto a observavam, nua, na sua cadeira de eletrocussão.

A tesoura cortava-lhe os fios de vida, os cabelos aloirados, outrora desalinhados como a pradaria. Tentavam os carrascos descobrir a maneira correta de lhe expurgar a alma.

A cada tesourada, era-lhe roubado um pedaço de si mesma. A cada passar de dedos banhados em suor e uma multiplicidade de gorduras que nem o olfato conseguia identificar, era-lhe removido um excerto de si. E ela chorava, e gritava, e berrava, no silêncio e quietude de si mesma.

— Agora, os seios, esses têm que ser elevados, dar mais volume, mais firmeza, que de coisas moles está o mundo farto. Os mamilos estão a apontar para o lado errado, e que auréolas são estas? Que nojeira é esta? — resmungavam eles, os júris da beleza inalcançável. — E esta cintura? Alguém tem que trabalhar nas gordurinhas aqui, que menina que queira ser apresentável, não pode andar nestes tratos.

Na banca existiam bisturis, aspiradores, sangue seco das vítimas anteriores, viciantes aos olhos dos… marcadores.

Enquanto por detrás dos seus óculos de cientistas tresloucados, os seres da beleza etérea, analisavam-na. Um pedaço de barro a moldar, carne para trabalhar, peças de lego nas mãos de uma criança cruel.

— O nariz parece uma batata — sibilou uma barata — partam os ossos, e moldem conforme o livro dos padrões.

— Os ombros estão demasiado largos — resmungou alguém pardo. — Que faremos, que faremos?

— Tudo tem tratamento, incluindo a cicatriz ali, abaixo da pélvis — disse o comandante das aberrações.

Ela era um nada, ali no centro de uma sala de mármore, sentindo os odores de éter, de álcool, de loucura, e da sua própria urina.

Sabia ser o último dia que se veria como ela mesma, dali, seria encaminhada para a sala das crianças educadas, para ser reeducada.

Robôs, todos somos escravizados para nos transformarmos em robôs.

— Que se inicie a dança — ordenou o mestre de cerimónias.

As câmaras apontaram para o meio.

No topo, nas suas casas, a comerem cheetos, pizzas e pilas, viviam os que resmungavam, presos nas suas banhas, banhados nos seus padrões sobre os quais não se regiam, que nem padres numa igreja romana, e babavam-se a observar o espetáculo.

— Por mais nove euros, pode ver a transmissão na íntegra — rosnavam as colunas. — E por apenas sessenta e nove euros por mês, durante o espetacular prazo de dez anos, pode vir ao programa e, ser moldado para a beleza eterna.

 

Pintura de René Magritte - Youth (1924)

Ecos de um Teatro Silencioso

Agosto 29, 2023

Carlos Palmito

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No teatro da vida, somos atores de histórias escritas pelo destino.

Somos laranjas prisioneiras na rugosidade da casca; peças aleatórias encarceradas num jardim florido de almas que tresandam a girassóis.

Somos a inspiração, a expiração; o sangue seco no gume da navalha e o repasto desusado de deuses alienados. Somos o negro, o branco, o opaco e o translúcido.

A lucidez da excitação de uma ejaculação mental: somos o archote que incendeia as muralhas da imaginação; a carne vegetativa na ponta de um garfo. Somos a grandiosidade omnisciente do vazio e, acima de tudo, somos um compreensível nada na magnitude das galáxias.

Que mais seremos, senão nós, manipulados por outros; desprovidos do papel principal, dos princípios da moralidade, controlados por fios fundados na falsidade da fundamentação de deusas gregas, deusas romanas e deuses por nascer? Talvez dos novos deuses, ou quem sabe, dos deuses mortos a renascer?

E continuamos. A vida flui e influi, a brisa a saber perfumes extintos nas pétalas da árvore-da-vida. No caos do início dos tempos, a tocar-nos gelidamente a derme, trazendo canções de embalar; acordes musicais corrompidos na aurora de um novo dia transmutam-se para um furacão, um ciclone a estraçalhar as emoções humanas.

Até que, na janela da torre mais alta do castelo de cartas que ainda não tombou na tempestade do destino, ouve-se a corneta.

Escutamos a opinião dos gaviões, dos cervos da natureza e dos servos aprisionados em livros: assertivamente, atentamente, homicidamente.

Nas rochas dos penhascos subaquáticos, germinam raios e trovões; nas casas desocupadas, tomadas impulsivamente pelos donos do teatro, saem peões e rainhas. Uvas são esmagadas em cálices fumegantes, e a revolução inicia-se.

Os tambores ribombam para lá dos anais da história, em direção ao futuro. Os casacos ásperos são vestidos por generais balofos e bafientos. Os espíritos despidos escolhem as suas armas; a pena sempre foi mais forte que a espada. Nos campos florescem ossos, nas florestas surgem areias. Na casa dos reis, banham-se virgens em sangue de mil cães danados.

E no final, cai o pano. Cai a noite, cai a memória, caem as estrelas ascendentes.

Em rodapé, manchado a seiva, lê-se “dedicado a todos os resistentes, a todos os atores que tombaram na execução desta peça”.

As luzes desligam-se.

No teatro da vida, somos lobos famintos a deambular num abrasador deserto canónico. Desprovidos de emoções, destituídos de alma, a marchar contra um império que ainda nem desabrochou.

 

Pintura de Yves Tanguy - Indefinite Divisibility (1942)

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