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Gritos mudos no silêncio das palavras!

Aqui toda a palavra grita em silêncio, sozinha na imensidão de todas as outras deixa-se ir... Adjetiva-me então

A Herança

Outubro 13, 2021

Carlos Palmito

Repicam os sinos na igreja, o sol brilha em cima enquanto que em baixo as coisas vestidas de negro perdem a luz.

Quatro figuras baixam lentamente uma caixa de pinho para o buraco na terra. Seria ali a ultima residência de Raúl, um local abandonado e sem qualquer esperança de regresso para os seus ocupantes.
As velhas que nunca o amaram choram de falsa dor, entre murmúrios, os que mais ressoam são: “Ai Raúl, com setenta anos, porque tinhas que ter tentado fugir à merda da bófia?”, “Eras um homem tão carinhoso, com a tua longa barba branca e sempre o chapéu negro na cabeça, porque tinhas que partir tão cedo?” e em murmúrios ainda mais baixo, quase como que pensamentos “O que será que vai acontecer com o Francisco agora? Era o pai quem o aguentava, o único quer conseguia”, “O Chico está tramado, baixo e gordo como é, agora ninguém o irá proteger.”.

Na noite da despedia, o céu vestia-se de estrelas, sem lua nem luar. Junto a uma fogueira estavam os próximos, Francisco, filho único de Raúl que remexia sem parar nas brasas, de olhar perdido e um copo de vinho desprezado em cima do banco, José, homem ainda enorme, apesar dos seus quarenta anos, olhava para a fogueira com os seus olhos amarelados… a doença começava a revelar-se no exterior. Segurava na sua mão gigantesca um copo de água-ardente, sua amada desde sempre, a única que o compreendia e amparava, o qual bebericava lentamente, como lentamente nasciam e morriam lágrimas nos seus olhos… ninguém notava. Mais afastada estava Rita, e, apesar da única luz ser proveniente das estrelas e da fogueira conseguia cativar a atenção de muitos… Os seus ondulantes cabelos, mais negros que a noite, e o olhar verde hipnotizavam qualquer coração. Perto dela, com expressão carrancuda estava o seu esposo, atento a ela, como que um guardião, ou… quem sabe, alguém a tomar conta do que é seu.

Três dias depois Francisco e José foram chamados pelo líder daquele acampamento, que em voz lenta começou o seu discurso: “Chico, Zé… já lhes dei as minhas condolências no enterro, e até mesmo depois na celebração de despedida, vocês sabem tão bem como eu que o Raúl era um irmão para mim, filhos de pai e mãe diferentes, mas mesmo assim um mano…”, os dois primos acompanhavam o discurso com atenção e curiosidade, em tantos anos esta era uma das poucas vezes que ali tinham sido chamados. Francisco foi convocado apenas uma vez antes quando numa discussão por causa de uma aposta perdida andou à porrada com um homem de outro acampamento. Já José foi trazido mais vezes, uma quando saiu da prisão após ter mandado duas pessoas para o hospital numa briga de rua motivada por álcool, outra quando o seu pai, irmão de Raúl, morreu muitos anos atrás. “…O que não sei se sabem é que ele já tinha falado comigo, e até me deixou por escrito, o que pretendia que acontecesse quando, e se algum dia morresse.”, Francisco mordeu o carnudo lábio inferior com tal brutalidade que o sangue lhe começou a brotar e descer o seu duplo queixo num pequeno fio escarlate. “Sendo assim, Chico, para ti o teu pai queria que ficasses com tudo o que não era dinheiro. Todas as roupas, móveis, o carro, tudo o que não fosse dinheiro. Sinceramente acho que ele estava com medo que fosses logo apostar tudo num cavalo de corrida qualquer, ou num jogo de póquer... Mesmo assim, eu próprio tenho medo que vás apostar essas coisas, conhecendo-te como conheço. Mas pronto, isso são pormenores. Já sobre o dinheiro, esse é para ir todo para o Zé, portanto, Chico, neste momento peço-te que entregues as chaves do cofre ao Zé e o deixes ir lá buscar o que lhe pertence. Se me não acreditam, está tudo aqui.” Terminou, enquanto apontava para uma folha A4 escrita à mão.
Francisco pegou-lhe e começou a ler desconfiado, arregalando os olhos mais e mais após cada frase. “Não!” Vociferou, com a sua voz grossa, “Nem pensar, que merda é esta? O pai era meu, o dinheiro é meu!” O seu anafado rosto estava vermelho de raiva, tal como os esbugalhados olhos transmitiam o mesmo sentimento. Levantou-se da cadeira num ápice, a qual caiu estrondosamente no soalho de madeira e correu para a porta a gesticular e esganiçar palavras incompreensíveis, ainda com a folha na mão saiu e fechou violentamente a porta nas suas costas.  “Não te preocupes Zé, todos nós sabemos que o dinheiro te pertence, afinal tu eras o braço direito do teu tio, enquanto que o gordo do teu primo só fazia asneiradas. Ele irá dar-te o que é teu por direito.” José estava perplexo, não pelo ataque do seu primo, esses ele conhecia, mas pelo facto do seu tio se ter lembrado de si, e o ter deixado por escrito. Ele sabia perfeitamente que tinha ajudado o tio inúmeras e incontáveis vezes, tanto nas travessias da fronteira com o produto escondido, como a encontrar negócios, ele tinha estado lá sempre, mas nunca tinha pedido nada em troca, nem jamais se lembraria de o fazer.
José agradeceu ao ancião com o olhar, não disse uma palavra, apenas troca de olhares, e saiu também, não atrás do primo, mas para conseguir colocar todos os pensamentos em ordem, e para deixar a lágrima que estava a insistir em nascer, rolar pela sua barbuda face.

Cinco dias se passaram após o ataque de raiva de Francisco. José franze o sobrolho enquanto ouve atentamente o que lhe é transmitido ao telefone, notam-se facilmente os músculos a retraírem-se no braço livre, talvez conscientemente tenha retraído esses, para não partir o telefone com a pressão. Ignóbil tentativa de controlo, pois bastaram dois segundos a seguir ao fim da chamada para atirar o mesmo com o máximo de força que os seus herculanos braços permitiam em direção à parede oposta. Pegou nas chaves da sua estimada Macal, e o capacete. Saiu, sem se lembrar de fechar a porta.

Uma hora depois, na calçada, junto ao café Rebento de soja, ouviu-se o chiar de pneus, sentindo-se o cheiro de borracha queimada. As portas abrem-se bruscamente estilhaçando os vidros no embate com a parede, permitindo nesse ato a fuga dos odores a tabaco, whiskey barato e suor escapar. Todos os olhos se viraram na direção do barbudo de capacete “Chico. Vim buscar o que me deves.” Vociferou. Na mesa de fundo, um gordo roliço levantou os olhos das cartas que tinha na mão e o seu queixo caiu, qual marioneta num espetáculo de rua. Era José que ali estava, na entrada da porta, entre a neblina do tabaco e os raios de sol do exterior. Não o via desde que tinham sido chamados ao ancião.
Assim que os olhos de José encontraram o anafado do seu primo, saltou na sua direção, quatro passos… saltos… bastaram para estar frente a frente com ele. “Paga-me, agora, neste preciso momento meu cabrão.”. “Não!”, guinchou Francisco através dos seus carnudos lábios, surpreendendo-se a si mesmo com a coragem. “É meu, eu sou o filho, tu és ninguém.”. A pesada mesa de carvalho que dividia os primos tombou mal a frase foi solta, com a fúria do pé esquerdo de José, e a sua atarracada mão encontrou o pescoço do primo, que apesar de gordo, quase desapareceu na desmesurada manápula, e foi erguido no ar com apenas um braço. Cento e vinte e um kilos de puro suor e gordura levantados como se fosse uma pena. A única coisa que Francisco se lembrou foi a sua navalha, que retirou atabalhoadamente do bolso direito e abriu a custo, golpeando o braço que o erguia. Caiu de costas no chão e berrou alto, sangue apareceu junto ao abdómen dele… Na queda e na confusão conseguiu espetar-se a ele próprio na barriga. José olhou para ele num misto de pena e repulsa, e virou costas, não sem antes apanhar do chão todo o dinheiro que tinha caído da mesa pontapeada. Partiu em corrida, saltando sobre os cacos junto à porta. Sentou-se na motorizada, seguido de uma figura esbelta de cabelo ondulado negro como a noite, e partiu.

Nessa noite a policia andou por toda a parte à procura dele, mas sem nunca o encontrar, a ultima noticia que tinham é que ele tinha atravessado a fronteira pela ponte de pedra, que era usada normalmente para tráfico. José conhecia essa ponte e essas estradas como as palmas de sua mão. Tantas vezes que ali tinha passado com o seu tio.

Dois meses depois, José, agora sem barba, e Rita estavam a beber um café numa esplanada junto a uma estação de comboios. Rita tinha na sua mão um bilhete para Itália, ia ter com a avó. Ambos sabiam que lá bem atrás, de onde tinham fugido, toda a gente pensava que eles eram amantes… Mas não, Rita era a mais bela das mulheres. Existem mulheres que passam o tempo a produzir-se para terem beleza, já a de Rita era natural, tão natural quanto respirar, contudo beleza muitas vezes atrai pessoas rudes e más, e a de Rita tinha cativado Joel, que lhe costumava demonstrar amor e carinho com punhos fechados e nódoas negras no corpo… nunca na cara. José não podia permitir mais isso, e quando Rita lhe telefonou no dia da fuga e contou que Joel estava cada vez pior, ele não conseguiu aguentar.

Nesse mesmo instante, em Portugal, Joel recebeu um telefona, e sorriu maquiavelicamente, “Agora sei onde estão meus cabrões!”.

Sala

Outubro 12, 2021

Carlos Palmito

Logo após a cozinha abre-se um arco em pedra, entrada da sala, sem portas nem janelas… simplesmente o arco. Mesmo na sua frente, como que uma baixa parede encontra-se um sofá, recente e velho no mesmo momento, as sestas que proporciona, ou os momentos de lazer, enquanto que na televisão se ouvem tiros, ou palavras soltas de amor, ou então gritos mudos num ecrã a negro, isso quando decido que o melhor dos mundos se encontra em as páginas de um livro. Ao desviarmos a atenção para a direita, notamos num dos cantos uma mesa de apoio, na qual residem um jarrão laranja vivo e a máquina de café, a melhor das companheiras após uma noite de exageros. No outro vive em harmonia uma estante com diversos livros, dos quais o ultimo tocado por minhas mãos foi Bocage. Entre os dois está um “espanta-espíritos”, purificador de espaços e almas. Desviamos então o olhar no sentido oposto, e encontramos mais uma estante, nesta repousam diversos objetos e imagens, alguns com nexo, outros perdidos no meu mundo. E de canto com a parede desse lado vivem memórias em formato de CD’s, toda uma adolescência, jogos e musicas, filmes e poesia.

Até Breve

Outubro 12, 2021

Carlos Palmito

Através da janela junto à asa ele vislumbrava e deleitava-se com tudo o que surgia perante os seus olhos, parecia um sonho como aqueles que assolavam a sua infância, onde caía sem parar, embora desta vez flutuasse.

O rio de um azul incomparável, atravessado por uma ponte e todos aqueles carreiros de formigas que se dividiam por entre as casas, pareciam pequenos blocos de lego a esta distância. Os carros e camiões sem parar, seres minúsculos, atarefados a colocar Lisboa em funcionamento.

Todas as peças são importantes neste quadro da vida. No final da ponte conseguia distinguir o guardião de braços abertos, Rei soberano na eternidade do momento.

Ao longe, na vastidão, ínfimos fiapos de nuvens moviam-se preguiçosamente, embalados pela brisa que ele quase jurava passar pelo seu corpo e acariciar a sua pele, mesmo estando vestido com o melhor dos fatos.

Ao voltar de novo a atenção para baixo, para o mundo que conhecia, via os verdes e o castelo, as colinas e o jardim. A meio do rio um barco, pequeno aos seus olhos, embora soubesse o quão majestoso o mesmo seria visto de perto. Fechou os olhos para absorver mentalmente toda a informação, enquanto uma assistente de bordo passava com o café, inundando o momento com o seu aroma singular e lembrou-se de uma musica antiga:

“Lá em cima há um céu de cetim

Há cometas, há planetas sem fim

Galileu teve um sonho assim

Há uma nave no espaço a subir passo a passo”

Sorriu, e embalado na melodia adormeceu!

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